O que um linguista faz? (Parte II)

Os linguistas aplicados são linguistas que podem elaborar e usar teorias para pensar em aplicações práticas no ensino de línguas, nas novas tecnologias ou no desenvolvimento de políticas públicas

Luisandro Mendes de Souza · Luisandro é professor da Universidade Federal do Paraná e estuda como a língua produz significado.

Para que serve estudar linguística?

Em outro texto comparei os linguistas com os filósofos gregos que foram os primeiros a se perguntar sobre como a linguagem humana funcionava, de que partes se constituía, como a linguagem estaria relacionada com a nossa mente, quem inventa as palavras, entre outras questões importantes e interessantes. Isso pode ter levado vocês a pensarem que hoje também teríamos linguistas equivalentes a Dionísio. Aqui as coisas complicam um pouco.

Dionísio Trácio (170-90 a.C.), ao mesmo tempo em que apresentou as regras de como se deveria falar e escrever o grego do seu tempo, uma tarefa que podemos chamar de essencialmente descritiva, também queria ensinar as pessoas a usar o grego que ele julgava ideal. Isto é, ele tinha uma tarefa essencialmente normativa e didática. Voilà! Estava inventada a gramática.

Se a gente parar para pensar um pouco, vai ver que há uma questão por detrás disso: por que será que era preciso ensinar os gregos a falar e escrever o grego corretamente? Essa questão pode ser estendida até o nosso tempo: por que temos que ir para a escola aprender uma língua que já sabemos falar ao chegarmos lá?

Se você está supondo que vamos para a escola aprender a escrever, parte da pergunta já está respondida. Escrever não é algo que aprendemos naturalmente, como aprendemos a falar. Aprender a escrever exige tempo, esforço, dedicação e um bom grau de consciência do processo. Quando uma criança escreve muintu ou derrẽpeti, ela está fazendo uma hipótese sobre a escrita da palavra – não é uma simples transcrição da sua fala, embora seja também.

Um professor de séries iniciais com formação linguística sabe explicar por que as crianças cometem os erros que cometem no início da alfabetização, e, assim, deveria saber também que estratégias pode tomar para fazer os alunos chegarem à grafia convencionada para as palavras na nossa língua.

Aos olhos de um leigo é apenas um erro infantil. Um professor de séries iniciais com formação linguística sabe explicar por que as crianças cometem os erros que cometem no início da alfabetização, e, assim, deveria saber também que estratégias pode tomar para fazer os alunos chegarem à grafia convencionada para as palavras na nossa língua.

Mas note que não aprendemos apenas a escrever, aprendemos a escrever de um certo jeito e apenas certas formas de escrever que circulam na sociedade: textos literários, notícias, cartas, textos argumentativos, resumos variados, textos científicos e filosóficos e assim por diante. Esperamos que a língua usada nesses textos seja um pouco diferente da língua usada na nossa fala. Um pouco aqui é um eufemismo, né? Vamos falar a verdade.

No Brasil e no mundo todo, temos linguistas preocupados em estudar como os diversos textos que circulam na sociedade funcionam, ao mesmo tempo em que temos também linguistas pensando em como tornar esses textos objetos didáticos: como podemos fazer com que as crianças aprendam a escrever de maneira mais eficiente?

Todo mundo sabe o básico: se aprende a ler e a escrever, lendo e escrevendo e pensando sobre o que se escreveu. Mas como é que o professor poderia dar uma aula de notícia, por exemplo? Como esse texto se estrutura? Como eu uso as palavras para construir o que quero dizer? Se fosse só construir orações com sujeito e predicado e encadeá-las uma depois da outra seria molezinha, não?

Voltemos à Grécia… Justamente porque perceberam diferenças entre como se falava o grego da época e como ele estava representado na escrita dos poetas e escritores, surgiu a preocupação de sistematizar o uso do idioma. Tem quem diga que vem daí todo o nosso tormento com a gramática: quando havia duas formas de dizer as coisas, decidiu-se que a forma correta deveria ser a que estava registrada pelo escritor, e não aquela que as pessoas usavam na sua fala cotidiana.

E não é assim até hoje, quando a gente tem dúvida se pode usar isso ou aquilo? Só quando existe mais de uma forma de dizer a mesma coisa! É duzentos gramas ou duzentas gramas, é mortandela ou mortadela? É porque ou por que?

Hoje a aplicação dos desenvolvimentos da linguística teórica vai muito além do ensino de línguas, embora seja um dos principais frutos. A pesquisa teórica permite que produzamos gramáticas e dicionários melhores, mais detalhados e com menos problemas teóricos e descritivos. Hoje sabemos que as pessoas que falam mortandela ou dez real não o fazem por burrice ou preguiça. (Responder por que as pessoas falam de maneiras diferentes precisaria de um outro texto, se você já estava se perguntado por que cargas d’água isso acontece.)

A pesquisa teórica permite que produzamos gramáticas e dicionários melhores, mais detalhados e com menos problemas teóricos e descritivos.

Os linguistas aplicados são linguistas que podem elaborar e usar teorias para pensar em aplicações práticas no ensino de línguas, nas novas tecnologias ou no desenvolvimento de políticas públicas – um exemplo desse último aspecto: os povos indígenas devem ser alfabetizados em português ou nas suas línguas nativas? Note que eles não são chamados de “aplicados” só porque são dedicados não. Eles se chamam assim porque pensam em aplicações práticas dos estudos, principalmente no ensino de línguas.

O estudo de um som ou de uma palavra, teoricamente, não leva a nenhum ganho social imediato ou palpável. Se João de Barros tivesse escrito a gramática definitiva do português, não seria preciso se ter escrito a multitude de gramáticas que foram escritas depois. Qualquer retrato linguístico que uma gramática faz ou qualquer estudo sobre uma língua, por mais abrangente que tente ser, será incompleto. Não só porque as línguas mudam com o tempo, mas também porque nossa compreensão do funcionamento da linguagem vai mudando. E é assim que as nossas gramáticas e dicionários, com o tempo, vão sendo aprimorados e melhorados: com estudo e pesquisa.

O estudo adequado das línguas também gera frutos que podem ser aplicados no desenvolvimento de tecnologias. Hoje você pode conversar com o seu celular ou com um aplicativo que liga e desliga as luzes da sua casa. Já parou para pensar como isso é possível? Isso só é possível porque linguistas e engenheiros conseguiram criar dispositivos que captam e transformam as ondas sonoras da nossa fala em impulsos elétricos, que então são interpretados como comandos pela sua engenhoca. Às vezes não conseguimos ver imediatamente o trabalho do linguista aí na rua, de forma que possamos tocá-lo. Mas é o trabalho dele que permite que tenhamos além dos sistemas de reconhecimento de voz, tradutores automáticos, sistemas de legendagem automática de vídeos, dicionários mais completos e mais detalhados, uma melhor compreensão do que são realmente patologias da fala (ou seja, quais são realmente as doenças e dificuldades articulatórias que podem afetar a fala de uma criança, necessitando, então, de atenção e tratamento), métodos mais eficazes de estudo, ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras, só para citar alguns poucos exemplos.