O que um linguista faz?(parte I)

O estudo da linguagem nasce a partir da curiosidade, da busca pela compreensão do funcionamento de algo que faz parte de nós tão, mas tão profundamente que muitos se surpreendem ao ouvir que a linguagem humana é um objeto do mundo natural e como tal pode ser estudado, assim como a nossa visão ou o nosso sistema digestivo.

Luisandro Mendes de Souza · Luisandro é professor da Universidade Federal do Paraná e estuda como a língua produz significado.

O linguista é o cientista que estuda a linguagem humana

Essa é uma resposta simples, objetiva, muito vaga e que pode ser encontrada no seu dicionário favorito. Se alguém me perguntasse o que eu faço para sobreviver, eu poderia responder que sou um linguista. Imagine que a replica seja com a pergunta do título. Acredito que ela ainda ficaria um pouco perdida se eu respondesse, então, com o que lemos nos dicionários. Afinal, essa resposta depende um bom tanto do que se entende por “cientista” e por “linguagem humana”.

Para ser mais concreto, eu poderia tentar dar um exemplo da cultura-pop, mas não temos muitos linguistas no cinema, na literatura ou nas histórias em quadrinhos. Às vezes os linguistas são chamados para desvendar códigos secretos de povos antigos e misteriosos, como no filme Stargate: a chave para o futuro da humanidade, de 1994; ou para desvendar o funcionamento de uma língua alienígena no caso do filme A Chegada, de 2016, em que a língua é peça chave para entendermos por que estão aqui e que mensagem nos trazem. No mundo real, o dia a dia de um linguista é menos emocionante, mas não deixa de fazer parte da empreitada científica.

Olhar para o passado nos ajuda a entender como chegamos ao presente. No estudo da linguagem o caminho é o mesmo. Por isso vou falar bem rapidamente como tudo começou. Para variar foram os filósofos na Grécia antiga os primeiros humanos no ocidente a produzirem reflexões sistemáticas sobre esses sons que saem da nossa boca e que chamamos de linguagem.

Como as línguas humanas funcionam? Quais são as suas partes? Como essas partes se relacionam? De onde as palavras vieram? Como a linguagem se relaciona com a mente ou com a estrutura social? Quem inventa as palavras? Foi essa curiosidade inicial que deu origem à gramática no ocidente e ao estudo sistemático da linguagem humana.

Eles foram os primeiros a classificar palavras em classes como substantivos, adjetivos, verbos, pronomes etc., coisa que para nós hoje soa banal e é algo que esperamos que uma criança ao sair do Ensino Fundamental saiba fazer. Para citar a contribuição de dois personagens fundamentais da filosofia: Platão (séc. V a.C.) foi o primeiro a dividir a oração em sujeito e predicado, e a dividir as palavras nas classes que chamamos hoje de substantivos e verbos; Aristóteles (séc. IV a.C.) acrescentou a essa divisão uma classe que chamou de “conectivos”.

Depois disso, os romanos adaptaram essa nomenclatura para falar de sua língua, o latim. Mais adiante, já no século XVI, João de Barros, o primeiro gramático da nossa língua, fez o mesmo para o português, usando a gramática greco-romana como modelo. Desde então, o que os gramáticos fizeram foi copiar e colar essa classificação: substantivo, verbo, adjetivo, pronome, advérbio, numeral, conjunção, preposição e interjeição.

Essa breve história nos ensina que há pouco mais de dois mil anos ninguém sabia como classificar as palavras, assim como ninguém sabia classificar muita coisa no mundo, claro. Até bem pouco tempo os cientistas ainda achavam que as baleias eram peixes. Veja só! E aí é que vem a pergunta: por que alguém se daria ao trabalho de classificar palavras? E se você for mais curioso ainda, pode estar se perguntando: afinal o que são as palavras, para que as classifiquemos?

É aqui que entra a curiosidade científica do linguista: como as línguas humanas funcionam? Quais são as suas partes? Como essas partes se relacionam? De onde as palavras vieram? Como a linguagem se relaciona com a mente ou com a estrutura social? Quem inventa as palavras? Foi essa curiosidade inicial que deu origem à gramática no ocidente e ao estudo sistemático da linguagem humana. Foi esse tipo de pergunta que moveu Platão, Aristóteles e outros filósofos gregos e deu início à filosofia e à ciência: como essa coisa funciona? No nosso caso, a “coisa” é a linguagem.

Além da preocupação em entender como o grego funcionava, Dionísio Trácio (170-90 a. C.), o primeiro gramático de que temos notícia, também tinha uma preocupação pedagógica, por isso definiu a Gramática como a reunião do uso que os poetas e prosadores fazem da língua. Dionísio trabalhava num dos primeiros centros de pesquisa do mundo, a Biblioteca de Alexandria, praticamente uma Harvard daqueles tempos – um lugar que congregava pesquisadores e filósofos com os interesses mais variados: filosofia, literatura, medicina, biologia, astronomia, história etc.

Veja, então, que o estudo da linguagem nasce a partir da curiosidade, da busca pela compreensão do funcionamento de algo que faz parte de nós tão, mas tão profundamente que muitos se surpreendem ao ouvir que a linguagem humana é um objeto do mundo natural e como tal pode ser estudado, assim como a nossa visão ou o nosso sistema digestivo. Isto é, ela tem partes e essas partes se combinam para cumprir uma determinada função.

Platão e Aristóteles refletiram sobre a linguagem humana sem esperar que suas conclusões levassem a um fim prático, ou fossem desembocar no desenvolvimento de um instrumento descritivo e didático como uma gramática. O trabalho de Dionísio, por outro lado, tinha um fim intelectual, entender como o grego era utilizado pelos poetas e escritores; e um fim prático, estabelecer as regras modelares do bom uso do grego da época, baseando-se num uso considerado pela comunidade de falantes como o melhor uso, um uso digno de ser imitado, o uso literário. Isso as gramáticas escolares fazem até hoje. Elas nos contam como devemos pronunciar as palavras, conjugar os verbos, onde devemos colocar os pronomes e assim por diante, tomando como modelo de uso a escrita literária.

Você consegue perceber a força disso? Estamos até hoje tratando o ensino e o aprendizado de língua da mesma forma como os gregos faziam dois mil anos atrás: existe um uso bom e um uso ruim; devemos imitar o bom e condenar o uso que alguém julgou como ruim.

Os linguistas teóricos hoje podem ser considerados “filósofos”, no sentido em que fazem reflexões sistemáticas sobre a linguagem, tentando explicar como ela se estrutura ou funciona. Seu trabalho consiste em fornecer as teorias e a metalinguagem para se formularem as explicações ou teorias e hipóteses.

Já que estamos falando nisso, afirmar que o português possui 10 classes de palavras é uma hipótese teórica como qualquer hipótese científica digna do nome. Ahn? Como assim?! É isso mesmo que você leu.

Afirmar que o português possui 10 classes de palavras é uma hipótese tanto quanto a teoria do movimento elíptico dos planetas é uma hipótese. Mas acontece que a hipótese de Kepler estava correta, e a hipótese sobre a organização das classes de palavras provavelmente está errada. Se está errada, então, podemos mostrar que o retrato do mundo que essa hipótese faz pode ser falseado. Entende o que eu quero dizer?

Ilustremos. O retrato de mundo que a hipótese geocêntrica fazia estava errado: a terra não é o centro do universo, sequer do sistema em que se encontra. E pensar que a humanidade passou mais de mil anos repetindo a hipótese de Ptolomeu (~90-168)! (Outro que trabalhou em Alexandria, a propósito).

afirmar que o português possui 10 classes de palavras é uma hipótese teórica como qualquer hipótese científica digna do nome.

E se também estivermos errados no caso das classes de palavras? E se estivermos feito papagaios repetindo a classificação de João de Barros sem nos darmos conta de que ela está errada? Note que qualquer novidade científica rapidamente estará nos livros escolares, mas em relação à linguagem ainda a aprendemos e ensinamos como os gregos faziam. Ou, se pensarmos no ensino de português, utilizamos uma classificação de palavras que possui 500 anos de história! Não é possível que nada de novo tenha sido descoberto sobre esse tema.

Para dar a vocês um exemplo, veja a definição de numeral na sua gramática favorita. Vou pegar a definição da minha, Gramática em 44 lições de Francisco Platão Savioli, de 1991.No capítulo sobre numerais lemos o seguinte: “Numeral é a palavra que quantifica numericamente os seres ou indica a ordem que eles ocupam numa certa sequência.” Até aí tudo bem, é uma definição que considera que tipo de entidade no mundo a classe nomeia, como a definição de verbo da mesma gramática: a palavra que “designa um processo ou estado”. Podemos admitir que utilizar como critério de classificação o tipo de objeto no mundo designado pela classe seja um critério racional. Afinal, a linguagem não deixa de ser uma espécie de rótulo para as coisas.

Mas a gramática nos diz também que os numerais funcionam sintaticamente como adjetivos, em expressões como dois jogadores, ou como substantivos, em dois mais dois são quatro. Percebem o problema? Eu criei uma classe de objetos que ao mesmo tempo pertence a outras duas classes. Fazendo uma analogia biológica, imagine que tipo de criatura seria um ser que às vezes é uma ave, às vezes é um mamífero, dependendo do seu entorno. É uma criatura esquisita, esse ser transmorfo, mas parece que é isso mesmo, numerais funcionam como substantivos e adjetivos, sem que sejam uma coisa ou outra.

Por que os numerais não estão lá dentro dessas classes, então? É esse tipo de história mal explicada que faz com que a gente saia da escola com a sensação de que nossa língua é complicada. O que é complicado é explicar como ela funciona usando a abordagem fornecida pela gramática, isso sim.

Claro, esse caso é só um exemplo. Os linguistas não estão preocupados em mostrar que os gramáticos estão errados. Mas estão sim preocupados em mostrar que a Gramática (no seu sentido tradicional, de manual para bem falar e escrever uma língua) é uma abordagem limitada para se entender como uma língua humana funciona nos seus vários níveis: no nível sonoro, no nível das palavras, no nível das orações, no nível do texto/discurso.

Por isso, os linguistas buscam desenvolver noções teóricas e uma metalinguagem que seja como um instrumento para mostrar como as línguas funcionam em seus vários aspectos, ao mesmo tempo em que formulam hipóteses que podem se mostrar falsas ou adequadas descritivamente. Exatamente como qualquer outro cientista faria. Se um dia os cientistas cogitaram que o átomo era a menor unidade de matéria indivisível e depois mudaram de ideia, o mesmo pode ser feito em relação à linguagem. De repente podemos perceber que a separação das palavras em classes da forma como ensinamos está errada, pois não explica um monte de coisas sobre o comportamento delas. O que fazemos, então? Ciência! Elaboramos novos conceitos e novas formas de explicar nosso objeto de estudo: a linguagem humana.