Fonética, que bicho é esse?

A fonética não se resume a transcrever palavras ou frases com símbolos que representam pronúncias, mas também nos permite aprender como cada um de nós move os órgãos da fala para fazer os sons de uma língua.

Plínio Almeida Barbosa · Plínio é linguista, com formação inicial em engenharia eletrônica. Professor da Unicamp, estuda como funciona a nossa fonação.

Em instituições acadêmicas com tradição em promover áreas relacionadas aos estudos de fonética e de terapia de fala, é comum encontrar canecas, camisetas e outros produtos onde se estampam símbolos fonéticos como mostrado abaixo. O mesmo acontece com o amante de línguas e dicionários, ao ver esses símbolos na tabela de pronúncia.

Figura 1: Foto de <http://www.cafepress.com/+phonetic-alphabet+mugs>. A transcrição corresponde a “I love speech pathology” na pronúncia do inglês americano

Muitos costumam achar que cada símbolo desse contém uma pista segura de como pronunciar o som da língua que representa. Mas, se fosse assim, bastaria a tabela de símbolos sonoros que se encontra no início de alguns dicionários para pronunciarmos adequadamente os sons de uma língua estrangeira. Sabemos muito bem que não é o caso, pois de outra forma existiria pouca dificuldade em se fazer entender por um amigo falante nativo do inglês, francês ou outro idioma.

Para bem pronunciar, é preciso aprender a ou corrigir posturas dos órgãos da fala, numa espécie de reprogramação postural (uma RPG sonora, isso mesmo!)

Se a tabela não basta, o que falta então? Faltam instruções de como mover os órgãos da fala para bem pronunciar os sons que queremos aprender. Essas instruções devem ser passadas por um especialista, pois não bastam as que se encontram em dicionários bilíngues que pretendem ensinar a produzir os sons da língua que se aprende com dicas na nossa língua materna. Por exemplo, no dicionário português-inglês da Collins, para explicar como fazer a vogal da palavra bird, se lê o seguinte: “entre o ‘e’ aberto e o ‘e’ fechado”. A instrução tem pouca valia se se leva em conta que a vogal de bird é mais longa que as nossas e que, quando a produzimos adequadamente, a língua se encontra numa região mais central do que para o ‘e’ fechado e o ‘e’ aberto do português.

Assim, para bem pronunciar, é preciso aprender a ou corrigir posturas dos órgãos da fala, numa espécie de reprogramação postural (uma RPG sonora, isso mesmo!). Vejamos um caso específico. Para produzir vogais, nós colocamos nossa língua para cima, para baixo, para frente e para trás. Veja na Figura 2 a posição da língua para produzir algumas dessas vogais. Pronuncie [i] – [e] – [ɛ] – [a] – [i] e veja como sua língua desce e sobe, além de ir cada vez mais para trás para depois voltar à frente. A boa articulação é a chave da boa pronúncia.

Figura 2: Posição da língua na articulação de vogais (Fonte: Wikipedia, <https://en.wikipedia.org/wiki/Cardinal_vowels>)

Quanto a um caso de diferença entre pronúncias de consoante, vejamos o exemplo do [p] da palavra pie (torta) em inglês, cuja transcrição fonética no dicionário monolíngue é [paj] ou [paɪ], transcrição que é a mesma da palavra “pai” num dicionário de português. No entanto, a pronúncia dessa consoante é diferente nas duas línguas, pois em inglês o “p” é aspirado, isto é, é produzido com um ruído quando os lábios “explodem” para produzir o som de p, algo que acontece em alguns dos sons “explosivos” nessa língua, como “p”, “t” e “k” (os linguistas chamam esses sons de oclusivas). Esse ruído, chamado aspiração, não existe ao pronunciar “pai” em português. Não é necessário dar esse detalhe no dicionário, já que em toda palavra será assim, por isso os dicionários explicam como o som é produzido na seção de pronúncia. Cada língua tem assim seu jeitinho de pronunciar tanto vogais quanto consoantes nas sílabas.

Outro tipo de distinção que não temos em português é a que se ouve entre as palavras fato (destino) e fatto (fato) em italiano, em que o “t” da segunda palavra demora mais para soltar a oclusão. É tão claro ouvir essa maior duração do ‘t’ numa estação de trem, em Roma, ao se anunciar o cais 18: diciotto.

Um especialista também percebe a tendência que falantes de português têm de nasalizar as vogais antes de consoantes como [m] ou [n] em alguns contextos (falamos algo como “dãma” para a palavra “dama”), o que não em italiano, espanhol ou francês. Nesse último caso, é belíssimo ouvir o excelente ator Fabrice Luchini, no filme La Discrète,  pronunciar clara e oralmente o “a” de dame em torno dos tempos 1’22” e 2’25” no excerto do filme que se pode apreciar abaixo. Observe que é uma sílaba “da” tão oral quanto a da palavra “dava” em português. Essas coisas dificilmente se aprendem em escolas de língua estrangeira.

A fonética não se resume a transcrever palavras ou frases com símbolos que representam pronúncias, mas também nos permite aprender como cada um de nós move os órgãos da fala para fazer os sons de uma língua; como distinguimos esses sons na nossa mente e mesmo quais são as características físicas desses sons, se são fortes ou fracos, agudos ou graves, longos ou curtos. Para tornar possível esse conhecimento, existem hoje vários instrumentos como o articulômetro e os aparelhos de ultrassom e ressonância magnética para observar os articuladores; os programas de software para extrair características dos sons e fazer as pessoas ouvirem sons para se estudar como classificam e como os distinguem.

Figura 3: No alto à esquerda, articulômetro no Beckman Institute (Fonte: https://beckman.illinois.edu/); no alto à direita, foto de ultrassom da página do Haskins Labs (Fonte: https://haskinslabs.org/about-us/features-and-demos/ultrasound-visual-feedback) e, abaixo, trecho de imagens do software Praat de análise sonora (Fonte: arquivo pessoal)

A dificuldade em aprender uma língua nova também se dá porque não conseguimos reconhecer as palavras individualmente quando ouvimos um estrangeiro falar numa língua que ainda nos é desconhecida. Isso porque não há fronteiras de palavras na fala, a não ser que sejam separadas por pausas ou sejam produzidas com muito mais força do que as palavras vizinhas. Pensemos em português e observemos que se pronunciam da mesma forma estes pares: “a camada” vs. “acamada” ou “há normais” vs. “anormais”. A separação é feita pela nossa mente, a partir do conhecimento das palavras da língua e do contexto em que são produzidas. Nesse caso, não há pistas sonoras para nos ajudar, o que provavelmente levou os antigos habitantes da Lusitânia e Hispânia a não perceberem que na sequência “āl-kutun” em árabe, a primeira sílaba era o artigo e não parte da palavra “algodão” (veja que no francês algodão é coton e, no inglês, cotton). O mesmo se deu com ās-sukkar, “açúcar” (no francês, sucre e no inglês, sugar) e com ār-ruzz “arroz” (no francês, riz e no inglês, rice) e tantas outras.

Aprender sobre os sons da fala nos permite pensar em aplicações diversas. Em tecnologia de fala, para a construção de sistemas que leem ou dialogam com os seres humanos ou que entendem o que dizemos. Na área forense, em procurar descobrir qual dos suspeitos é o criminoso a partir de sua fala e voz. Em ensino de língua estrangeira, a bem pronunciar para não causar algum problema de comunicação. Em terapia da fala, em como corrigir desvios de pronúncia de pessoas com alguma dificuldade com os sons da fala.

Há no estudo dos sons todo um mundo a se descobrir, porque há mais sons entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia!

Livros a respeito do tema

Barbosa, P. A.; Madureira, S. (2015) Manual de Fonética Acústica Experimental. São Paulo: Cortez.

Ladefoged, P.; Maddieson, I. (1996). The sounds of the world’s languages. Oxford: Blackwell.

Underhill, A. (1994). Sound foundations. Oxford: Heinemann.