O mundo aos pedaços: como a segmentação nos ajudar a compreender estímulos

Quando ouvimos alguém falar também juntamos pedaços para compreender o todo.

Ebson Wilkerson R. da Silva e Miguel Oliveira Jr · Ebson é é doutorando em linguística pela Universidade Federal de Alagoas e pesquisa sobre como a segmentação prosódica ajuda na compreensão de narrativas orais e espontâneas. Miguel é doutor em Linguística e professor da Universidade Federal de Alagoas.

Se você não costuma acompanhar os chamados virais das redes sociais, vai se surpreender com a foto abaixo. Olhando com bastante atenção vai ver que ela é uma foto em preto e branco. Duvida? Olhe de novo. Perceba que apenas as linhas tem cores.

É claro que o truque ficou famoso e se tornou um viral no twitter recentemente. O responsável pela imagem é artista de mídias digitais Øyvind Kolås (https://www.patreon.com/pippin). Aliás, há uma série de outras imagens capazes de deixar o seu cérebro bem confuso.

Mas você sabe por que isso acontece? E o que isso tem a ver com a linguagem?

Em outras palavras, para perceber melhor a informação global, o nosso cérebro faz uso de informações contidas em unidades menores.

As cores que vemos na foto em preto e branco são resultantes do nosso cérebro construindo uma realidade a partir de informações visuais fragmentadas. Para o cientista Bart Anderson, da Universidade de Sidney (Austrália), o nosso cérebro edita as imagens sobrepondo as linhas coloridas às partes do corpo e da vestimenta das pessoas na foto. “O sistema de cores é o que os cientistas da visão chamam de ‘passa baixa’: vários dos campos receptivos que decodificam as cores são bastante amplos”, diz ele. Em outras palavras, para perceber melhor a informação global, o nosso cérebro faz uso de informações contidas em unidades menores.

Em um poema famoso, Gregório de Matos proclama: “O todo sem a parte não é todo”. É isso que aprendemos em muitas práticas sociais. Quando contamos histórias, por exemplo, segmentamos as narrativas em vários pequenos eventos. Assim, se nos pedirem que lembremos do que aconteceu ontem, podemos responder algo como: “Primeiro, me preparei para o dia: tomei café da manhã, arrumei a bolsa. Em seguida, fui trabalhar. No caminho para casa, comprei comida. Quando cheguei em casa, fiz o jantar. Por volta das onze, fui para a cama”. Essas ações podem ser subdivididas em ações mais detalhadas. Por exemplo, a atividade “fiz o jantar” poderia ser narrada assim: “Desembrulhei as compras, preparei o peixe, pus os legumes par cozinhar no vapor, abri uma garrafa de vinho e sentei-me para comer a deliciosa comida que preparei”. Essa segmentação de atividades em unidades menores é importante para construir o todo: a história do que aconteceu ontem em sua vida.

Assim como na percepção da imagem viral da internet, quando ouvimos alguém falar também juntamos pedaços para compreender o todo.

Claro: não fazemos isso de maneira consciente ou deliberada, mas como resultado de um processo que considera como compreendemos estímulos. É assim que nosso cérebro percebe o fluxo contínuo de informações: segmenta-o em unidades significativas para poder interpretá-lo de maneira adequada. É por isso que, num primeiro momento, vemos as fotografias de Øyvind Kolås coloridas, mas, ao reconsiderá-las com maior atenção, conseguimos perceber que as fotografias não são de fato coloridas. Quando olhamos as fotos rapidamente, construímos uma representação a partir das informações que temos. Isto é, integramos informações do ambiente e da memória de longo prazo (por exemplo, conhecimento semântico, experiência anterior) para criar um modelo de representação. Após um olhar mais atento, conseguimos perceber as unidades menores: as linhas coloridas, os tons de cinzas dos rostos das pessoas, etc.

Assim como na percepção da imagem viral da internet, quando ouvimos alguém falar também juntamos pedaços para compreender o todo. Os pedaços que compõem o todo da fala possuem relações hierárquicas e coerentes. Como num quebra-cabeça, os ouvintes conseguem identificar que peças associam-se entre si por pistas mais ou menos óbvias. No quebra-cabeça, essas pistas são visuais: cores, formas, texturas. Na fala, as pistas são acústicas – mais particularmente prosódicas: pausa, duração, entonação, intensidade. Assim como usamos essas pistas para identificar um conjunto de peças de um quebra-cabeça que se assemelham, também usamos pistas para identificar conjuntos de peças distintas. Ao ouvirmos a versão mais detalhada da história acima, vamos reconhecer rapidamente que as ações referentes à atividade “fazer o jantar” compõem um conjunto particular na narrativa. Essa percepção é facilitada por conta de um conjunto de pistas prosódicas. Também são pistas prosódicas que indicam que um conjunto de informações coesas chegaram ao fim e um novo conjunto de informações vai começar. Mas que pistas são essas? Como se articulam?

Para responder essas perguntas, pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas, Miguel Oliveira Jr e Ebson Wilkerson Silva, desenvolveram um experimento com narrativas espontânea, gravadas durante o curso de conversas. No experimento, as narrativas foram apresentadas a estudantes universitários em quatro diferentes versões: (i) transcritas, sem marcas de pontuação ou paragrafação, (ii) em áudio, acompanhadas da transcrição, (iii) apenas em áudio e (iv) em áudio, mas filtrado de uma maneira a tornar a fala ininteligível, mantendo as informações prosódicas intactas.

Foi solicitado aos participantes indicassem nas narrativas o fim de uma unidade comunicativa, de acordo com aquilo que julgassem ser uma unidade comunicativa. Quando comparados os resultados dos julgamentos, observou-se um fenômeno curioso: uma concordância significativa entre os participantes do experimento acerca do ponto onde uma unidade comunicativa nas narrativas termina. É como se, por exemplo, a maioria concordasse que, na narrativa acima, a oração “sentei-me para comer a deliciosa comida que preparei” concluísse uma unidade comunicativa. Os resultados do estudo também revelaram que o acesso ao áudio aumentava a concordância entre os participantes do experimento, o que sugere que as pistas prosódicas são importantes para o reconhecimento das unidades que estruturam uma narrativa oral.

No entanto, o resultado mais curioso foi o seguinte: mesmo sem entender o conteúdo das narrativas, os participantes do experimento concordaram significativamente com a marcação do fim de unidades comunicativas. Este resultado sugere que as pistas prosódicas por si sós fornecem informações suficientes para a identificação das partes que compõem o todo em narrativas orais. A prosódia funciona aqui mais ou menos como as listas coloridas sobrepostas nas fotografias preto-e-brancas de Øyvind Kolås: conferem a partes do todo uma caracterização que as definem.

Em um outro estudo, foi utilizado um script para identificar automaticamente o fim de unidades comunicativas na fala. O script, desenvolvido pelo Prof. Plínio Barbosa, da Unicamp, leva em consideração informações acústicas presentes no arquivo de áudio que analisa.Quando as segmentações manuais foram comparadas com as segmentações automáticas, observou-se uma grande coincidência entre as mesmas, inclusive a segmentação dos arquivos de áudio ininteligível. Isso sugere que as informações acústicas são de fato relevantes para a segmentação do discurso falado e são suficientes para o reconhecimento automático de sua estrutura.

A prosódia funciona aqui mais ou menos como as listas coloridas sobrepostas nas fotografias preto-e-brancas de Øyvind Kolås: conferem a partes do todo uma caracterização que as definem.

Estudos que abordem a compreensão do discurso são importantes para várias áreas do conhecimento: a psicologia (para a compreensão de como as pessoas percebem, lembram-se, planejam e tomam decisões, por exemplo), a engenharia da computação (para, entre outras coisas, o aprimoramento de sistemas de inteligência artificial e de interação homem-máquina) e a linguística (para o entendimento das variadas formas que unidades discursivas são representados em línguas diversas). Muito particularmente, entender como essa compreensão se dá no cérebro pode nos ajudar a compreender, entre outras coisas, o que acontece quando circuitos neurais deixam de funcionar corretamente, em casos como os distúrbios psiquiátrico e neurológico: a esquizofrenia, o autismo, o Mal de Alzheimer ou de Parkinson.

Para saber mais:

BARBOSA, P. A.Conhecendo melhor a prosódia:aspectos teóricos e metodológicos daquilo que molda nossa enunciação. Revista Estudos Linguísticos, Belo Horizonte, v.20, n.1, p.11- 27, jan./jun. 2012.

DOCKRILL, Peter. This Photo is Black and White. Here’s the Science that Makes your Brain See Colour. ScienceAlert. 30 de jul. de 2019. Disponível em: <https://www.sciencealert.com/crazy-optical-illusion-makes-your-brain-see-colour-in-a-black-and-white-photo>. Acesso em: 24 de outubro de 2019.

OLIVEIRA Jr, M., Prosodic Features in Spontaneous Narratives. Tese (Doutorado em Linguística) Simon Fraser University, Vancouver, p. 291. 2000.

OLIVEIRA JR., M.; CRUZ, R.; SILVA, E. W. A relação entre a prosódia e a estrutura de narrativas espontâneas: um estudo perceptual. Revista Diadorim, Rio de Janeiro, vol. 12, p. 39-50, dez. 2012.

SILVA. E. W.  A relação entre produção e percepção de pistas prosódicas na segmentação de narrativas espontâneas. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Faculdade de Letras, UFAL. Maceió, p. 85. 2017.