A sua superdesenvolvida habilidade de ler mentes

Uma das características distintivas da comunicação humana é o fato de ela depender, em grande parte, do reconhecimento das intenções que o emissor de um estímulo pretendeu comunicar com ele. Funcionando sentenças linguísticas como pistas de intenções a serem inferidas pelo ouvinte, interações conversacionais são constantes exercícios de leitura de mentes.

Renato Caruso Vieira · Renato Caruso Vieira é bacharel, mestre e doutor em linguística pela Universidade de São Paulo e tem sua atuação acadêmica voltada à área de desenvolvimento linguístico infantil. Nos últimos anos, tem se dedicado a investigar a relação entre o amadurecimento da cognição social das crianças e o desenvolvimento de sua competência pragmática.

Você é encarregado de conduzir uma reunião com quatro diretores de filiais da sua empresa: a Srª A., o Sr. B., a Srª C. e o Sr. D. Dirigindo-se à sala de reuniões, você é recebido, ainda no corredor, por um de seus assessores, com quem trava o seguinte diálogo:

Você: — Todos os diretores chegaram?

Assessor: — Alguns chegaram.

Adentrando a sala, você avista, já acomodados e preparados, a Srª A., o Sr. B., a Srª C. e o Sr. D. Confuso, você interpela discretamente o assessor:

— Por que você disse que alguns dos diretores haviam chegando se todos eles já chegaram?

— Tudo o que eu disse foi que alguns dos diretores haviam chegado. A Srª A. e o Sr. B são alguns dos diretores e eles chegaram. Portanto, eu falei a verdade.

Apesar de reconhecer a consistência lógica irretocável da justificativa, você dificilmente absolveria seu assessor da culpa de ter feito mau uso da linguagem. Você sabe que, no contexto em que foi produzida, a combinação de palavras “alguns chegaram” equivale a um atalho comunicativo para acesso à representação de mundo que o falante pretendeu transmitir, e que poderia ser parafraseada por “somente alguns dos diretores chegaram, mas não todos”.

Você percebe, ainda que intuitivamente, que o sucesso da comunicação humana depende de um contrato acolhido tacitamente pelos interlocutores, no qual se estabelece que as palavras nada mais são do que pistas que, juntamente com informações contextuais, guiarão a interpretação do ouvinte à representação de mundo que o falante pretendeu transmitir. Palavras são atalhos para a intenção comunicativa do falante, e a indicação de um atalho enganoso, como a do seu assessor, constitui ruptura unilateral do vínculo contratual comunicativo tacitamente firmado entre vocês.

A pragmática, assim, é o estudo dos significados linguísticos em contexto, e diverge da semântica por esta direcionar seu foco às relações internas de significado das sentenças.

Posto de outra forma, nenhuma comunicação intermediada por códigos (como o código gramatical das línguas) é capaz de comportar, no interior de seus estímulos (como os sons das línguas) todo o significado pretendido por seu emissor. No ponto de contato entre o que foi explicitamente dito e o que se teve a intenção de comunicar é que se inserem os estudos do campo da linguística conhecido como pragmática.

A multiplicidade de fenômenos linguísticos veiculadores de sentidos não explicitados verbalmente mas “subcomunicados” para serem inferidos pelo ouvinte embarca metáforas, ironias, ambiguidades, dentre outros.

A pragmática, assim, é o estudo dos significados linguísticos em contexto, e diverge da semântica por esta direcionar seu foco às relações internas de significado das sentenças.

A correta interpretação da sentença proferida por um falante depende da habilidade de reconhecimento das intenções que ele pretendeu comunicar com aquela escolha de palavras. E a escolha de palavras do falante depende da avaliação que ele faz da habilidade do ouvinte de reconhecer as intenções comunicadas por ele.

Apesar de as fronteiras entre semântica e pragmática, assim como a definição e o alcance do “contexto”, serem objetos de disputas teóricas, é certo que de alguns elementos extralinguísticos dependem nossa correta interpretação das sentenças: a ignorância do local e da data em que termos como “aqui” e “hoje” são enunciados impede a recuperação das devidas referências; a insensibilidade à entonação aplicada na sentença pode inviabilizar interpretação de ironia; referências do ambiente que estão simultaneamente capturando a atenção dos dois interlocutores podem suprimir a necessidade de menção linguística a elas; o conhecimento que cada interlocutor assume que o outro tenha acerca do assunto pautado pode encaminhar suas escolhas por informações mais ou menos descritivas e mais ou menos explícitas (criando espaço para mais ou menos lacunas a serem recuperadas por inferências pragmáticas); etc.      

As diferentes correntes de pragmática, que propõem diferentes sistematizações dos processos de recuperação de sentidos não explicitados, partem do reconhecimento comum de que tais processos são automática e intuitivamente ativados tanto na interpretação quanto na produção linguística. A correta interpretação da sentença proferida por um falante depende da habilidade de reconhecimento das intenções que ele pretendeu comunicar com aquela escolha de palavras. E a escolha de palavras do falante depende da avaliação que ele faz da habilidade do ouvinte de reconhecer as intenções comunicadas por ele. Assim, a culpa pelo mau uso da linguagem que atribuímos ao assessor, na narração ilustrativa que introduziu este texto, adveio de sua incapacidade de reconhecer a indução à inferência de “somente alguns mas não todos” provocada pela escolha de palavras que fez naquele contexto particular.

Voltando-nos aos fundamentos cognitivos da atividade pragmática, podemos identificar as interações conversacionais como constantes exercícios de metarrepresentação (representação mental da representação mental do outro) sustentados pela superdesenvolvida habilidade humana de “leitura de mentes” (em referência ao conceito de mind-reading, frequentemente empregado na literatura que versa sobre o tema).

A “leitura de mentes”, que conceitualmente se confunde com a capacidade de reconhecimento das intenções alheias, é uma adaptação humana com participação em todas as grandes conquistas evolutivas da nossa espécie em termos de cognição social. Não se observa no reino animal capacidade comparável à humana de comunicação, de cooperação, de compartilhamento de informações, de negociação.

Voltando-nos aos fundamentos cognitivos da atividade pragmática, podemos identificar as interações conversacionais como constantes exercícios de metarrepresentação (representação mental da representação mental do outro) sustentados pela superdesenvolvida habilidade humana de “leitura de mentes”

Enquanto que incipientes atividades cognitivas dedicadas a interações sociais com os demais membros da espécie foram descobertas em outros animais, de insetos a primatas, os humanos são o apogeu evolutivo da cognição social. Apesar de chimpanzés, por exemplo, apresentarem vestígios de compreensão de estados emocionais alheios agindo como propulsores de ação intencional, eles são incapazes de assumir que indivíduos possam ser portadores de crenças sobre o mundo distintas das suas e, sobretudo, de crenças falsas (por exemplo, sobre a localização de um objeto que foi movido na ausência do indivíduo). 

As adaptações evolutivas que nos tornaram peritos em reconhecimento de sinais de intencionalidade têm manifestação precoce: recém-nascidos devotam elevada parcela de atenção a rostos e vozes humanas; com um ano, somos capazes de voltar a atenção a objetos apontados gestualmente ou mirados visualmente por outros; e, no segundo ano, adquirimos a tendência de imitar gestos alheios propositais ― mas não os acidentais.

A pragmática tem relevância capital para os estudos da dimensão comunicativa das línguas, e, quando explorada em sua interface linguístico-cognitiva, pode também contribuir para uma maior compreensão de uma das marcas mais distintivas da nossa espécie: a eficaz comunicação inferencial entre mentes intermediada por sinais codificados.

Para saber mais:

Banaji, M. & Gelman, S. 2014. Navigating the Social World: What Infants, Chidren, and Other Species Can Teach Us. Oxford University Press

Carston, R. 2008. Linguistic communication and the semantic/pragmatic distinction. Synthese 165(3): 321-345.