Falar ‘a Pabllo’ é possível no português?

O uso de construções linguísticas como “A Pabllo” é uma forma do falante realizar atos sociais concretos

Déreck K. Ferreira Pereira · Déreck K. Ferreira Pereira é mestre e doutorando em linguística. Ele trabalha, principalmente, com a relação entre os elementos que formam a frase no português brasileiro, com base na teoria linguística que acredita que a língua pode ser afetada também por questões sociais.

Quando estávamos realizando entrevistas orais no sertão de Pernambuco durante a realização de um trabalho finalizado em 2017, nos deparamos com um uso bem peculiar da língua portuguesa que, até então, tinha passado despercebido por nós e, pelo que parece, por outros estudiosos da área. Em uma dessas entrevistas informais, um participante falou uma frase semelhante a esta: “Eu gosto da Pabllo Vittar”. Diante da observação de que aquela não tinha sido a única vez em que ele fazia tal uso, percebemos que essa realização não se caracterizava como um “descuido” na sua fala, mas algo que a caracterizava. Ao comentarmos tal uso com outros linguistas, eles, de imediato, questionaram: “falar ‘a Pabllo’ é possível no português?”.

No que diz respeito à realização de artigo definido diante de nomes próprios de pessoas, as gramáticas tradicionais, aquelas adotadas pelas escolas, afirmam que seu uso é facultativo, ou seja, podemos ou não colocar um artigo definido diante dos referidos nomes (ex.: João saiu./ O João saiu.), sem que isso traga prejuízo para a frase. As gramáticas ainda prescrevem, em suas seções sobre concordância, a seguinte regra: os artigos devem concordar em número e gênero com o nome a que se unem. Logo, no que diz respeito ao uso de artigo diante de nomes próprios de pessoas, se o nome for masculino, o artigo também deve ser.

Dessa forma, se tomarmos como verdade a regra prevista pelas gramáticas tradicionais, podemos dizer que nosso entrevistado estaria cometendo um “erro” e, assim, desrespeitando a língua portuguesa ao falar “a Pabllo”. Todavia, como apontado pelo linguista Carlos Pedreira, em sua obra de 2017, as gramáticas ainda hoje tomam como base a língua utilizada, com finalidades estéticas, por um grupo restrito de poetas. Esse fato faz com que nem sempre encontremos nas ruas o português que estudamos na escola. A estudiosa da linguagem Irandé Antunes, em livro publicado em 2007, afirma que o que encontramos nas gramáticas é uma idealização do português relacionada a como deveríamos utilizar a língua. Fora dessa idealização, no entanto, encontramos o que é real no português, ou seja, aquilo que é, de fato, produzido pelos falantes em diferentes situações de uso.

Um dos campos da linguística preocupados com a língua em uso é a Sociolinguística. Para esse campo de estudo linguístico, a língua é entendida como algo capaz de sofrer transformações e deve ser observada também a partir das questões sociais que a rodeiam. Com base nisso, assumimos que o social que envolve o indivíduo interfere em seus usos linguísticos. Assim, a forma que é considerada “erro” pela gramática tradicional, para a Sociolinguística, é entendida como uma variante, isto é, outra forma possível na língua de dizer aquilo que se quer.

Assumimos que o social que envolve o indivíduo interfere em seus usos linguísticos.

O indivíduo que tome como base a gramática tradicional diria que a fala de nosso participante possui um “erro” quanto ao emprego do artigo “a” diante do nome próprio “Pabllo”, pois este é masculino e aquele, feminino. Porém, pesquisas, como as realizadas pelos linguistas Hélito Lau, em 2015, e Déreck Pereira, com lançamento previsto para 2021, afirmam que essa forma de se referir ao Outro é, frequentemente, utilizada na fala de uma parcela específica da população: a LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e outros).

Tendo em mente a existência dessa terceira possibilidade de se referir às pessoas, Déreck Pereira, em seu estudo ainda em andamento, solicitou que 30 recifenses LGBT+ expusessem suas visões acerca da utilização de artigo feminino diante de nomes próprios masculinos. Primeiramente, o autor verificou que todos os participantes conheciam a referida possibilidade de uso, confirmando a sua existência no português brasileiro e, mais do que isso, que a utilização desse artigo feminino em frente a um nome próprio masculino ocorre diante de certas regras, levando em conta, por exemplo: (i) o gênero do nome próprio (os resultados obtidos têm mostrado que o uso do artigo masculino não é comum diante de nome próprio feminino) e (ii) o contexto de uso dessa forma (os resultados têm revelado que contextos informais de fala, isto é, quando estamos conversando com um amigo ou um familiar, favorecem o uso da forma mencionada).

Assim, o uso de construções linguísticas como “A Pabllo” é uma forma do falante realizar atos sociais concretos.

Não podemos perder de vista o que há por de trás da utilização de artigo feminino diante de nomes próprios masculinos. Embora falar “a Pabllo” pareça uma simples menção àquele de quem se fala, na verdade, é a realização de uma ação no mundo. Essa ideia vai na direção do que defende o filósofo da linguagem Herbert Grice, em obra de 1982, de que nem todas as informações dadas pelo falante são dadas de forma explícita. Por exemplo, quando falamos “Aqui faz calor”, apesar de parecer só uma descrição, podemos estar fazendo um pedido implícito para que liguem o ar-condicionado ou abram a janela. Em se tratando da forma em análise, ao falar “eu gosto da Pabllo Vittar”, o falante faz algo parecido. Ou seja, não simplesmente descreve seu gosto musical, mas reproduz ideias sobre gênero e sexualidade que, por meio da repetição ao longo do tempo, passa a ser algo característico que o define enquanto membro de um grupo social. Assim, o uso de construções linguísticas como “A Pabllo” é uma forma do falante realizar atos sociais concretos.

A sociedade evolui e a língua a acompanha.

Por fim, é importante salientarmos que a referida construção não entrou na fala LGBT+ de forma aleatória, mas sim com o auxílio dos movimentos, das lutas e causas sociais que envolvem tal grupo. Como dissemos, a língua é moldada através do social que circunda seu falante. Não podemos fechar os olhos para uma variante presente na fala de integrantes de uma comunidade que é, segundo a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT), composta por cerca de 20 milhões de brasileiros. A sociedade evolui e a língua a acompanha.

Para saber mais

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE GAYS, LÉSBICAS, TRAVESTIS E TRANSEXUAIS (ABGLT). Manual de comunicação LGBT: lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. 2015. Disponível em: < https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2015/09/Manual-de-Comunica%C3%A7%C3%A3o-LGBT.pdf>. Acesso em: 20 de maio de 2020.

ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de língua sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

GRICE, Herbert Paul. Lógica e Conversação. In: DASCAL, M. Fundamentos metodológicos da linguística. Campinas: Global Universitária 1982. p. 81. v. IV

LAU, Hélito Diego. A (des)formação do pajubá: fatores da linguagem da comunidade LGBT. 2015. Disponível em: < file:///C:/Users/Usu%C3%A1rio/Desktop/TESE/TESE/textos/Identidade%20e%20g%C 3%AAnero/LAU.pdf >. Acesso em: 12 de maio de 2018.

PEDREIRA, Carlos Wilson de Jesus. Abordagem sociolinguística sobre o ensino de concordância de número no sintagma verbal. 2017. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017.

PEREIRA, Déreck Kássio Ferreira. Crenças e atitudes linguísticas acerca da concordância de gênero entre o artigo definido e o antropônimo na comunidade LGBT+ de Recife-Pe. 2021. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2021. No prelo.