A fórmula mágica para o texto perfeito. Só que não!

A língua é uma atividade social, histórica e ideológica que somente ganha vida na forma de textos concretos

Luana Amaral e Jairo Carvalhais · Luana Amaral e Jairo Carvalhais são professores e pesquisadores da Faculdade de Letras da UFMG. Ambos têm doutorado em Linguística e são professores de Linguística Textual. Luana é pesquisadora da área de Semântica e se interessa pelo estudo do significado dos verbos; Jairo é pesquisador da área de Linguística Textual e se interessa pelo estudo da argumentação nos textos e nos discursos.

Em 2019, dos quase 4 milhões de candidatos que fizeram o ENEM, apenas 53 conseguiram nota 1000 na redação; a média geral ficou abaixo dos 600 pontos. É curioso observar que, mesmo depois de terem assistido a incontáveis aulas de Língua Portuguesa, os candidatos ainda não conseguem escrever um bom texto! Produzir um texto é uma tarefa assim tão difícil, acessível apenas a alguns mortais que detêm a arte da comunicação escrita ou será que nos falta ainda uma fórmula mágica para acertar em cheio e escrever o texto perfeito?

A Linguística Textual, ciência que estuda o texto, responde: nenhuma das alternativas anteriores.

A visão de texto que remete à tão conhecida redação escolar, ainda na atualidade, entende o texto como um conjunto de orações conectadas através de elementos de coesão, como conjunções (e, mas, porém, etc.) e pronomes (ele, seu, etc.). Nessa abordagem, a coesão é vista como a ligação entre duas orações. Uma expressão como Mário viu o João é uma oração. Já um conjunto de orações, como Mário viu o João e depois viu o Paulo. Juntos, os três foram comprar doces.,seria considerado um texto. Além disso, nessa concepção um bom texto é aquele que apresenta “correção gramatical e ortográfica”.

Produzir um texto é uma tarefa assim tão difícil, acessível apenas a alguns mortais que detêm a arte da comunicação escrita ou será que nos falta ainda uma fórmula mágica para acertar em cheio e escrever o texto perfeito?

Essa forma de caracterização de texto teve seu ponto alto na primeira fase da Linguística Textual, nos anos 60 do século XX, mas não se sustentou por muito tempo. Lendo a descrição do anúncio de classificados abaixo, é fácil perceber por que essa concepção precisaria abrigar em seu escopo novos elementos para tratar dos fenômenos textuais.

A descrição desse anúncio é um texto?

Não há aí nenhuma palavra que une as orações. Elas são ligadas pelo significado e pelo nosso conhecimento de mundo. Sabemos que carros têm donos e bancos; sabemos que donos de carros pagam IPVA, etc. A descrição também apresenta uma linguagem diferente da considerada “correta”. As frases são construídas sem verbos, como IPVA 2020 pago, ao invés de o IPVA 2020 foi pago. A expressão a vista é construída sem crase, o que contraria as regras da gramática “tradicional”. Esse tipo de gramática busca a padronização da língua, prescrevendo, por meio de regras e normas, como devemos falar e escrever, independentemente da situação de comunicação. Justamente por isso, essa gramática também é conhecida como “gramática normativa” ou “gramática prescritiva”.

Vale notar que, mesmo não seguindo à risca as regras gramaticais, não temos problemas para compreender o anúncio e não há impedimento para a venda do carro. A descrição é, então, um texto, situado em seu contexto real de circulação.

Um bom texto (…) resulta de um processo de textualização e cumpre bem o objetivo comunicativo do gênero ao qual pertence. Um bom texto não é aquele que tem “correção gramatical e ortográfica”.

Assim, a Linguística Textual reconhece, desde a década de 80, que a coesão é apenas um dentre vários fatores colocados em funcionamento para a construção de um texto. No plano verbal, para que um conjunto – oral ou escrito – de palavras seja um texto, é preciso que tal ocorrência esteja vinculada  a uma situação comunicativa concreta, apresentando, uma intencionalidade por parte da instância que a produz, uma aceitabilidade por parte do leitor ou ouvinte, uma troca de conhecimentos sobre o tema tratado, um equilíbrio entre informações novas e informações supostamente conhecidas sobre o assunto e um “modelo” socialmente conhecido a partir do qual a ocorrência linguística ganhará forma. Esses fatores co(n)textuais e cognitivos trabalham a serviço da construção de sentidos e, vistos em seu conjunto, caracterizam o processo de textualização. É esse fenômeno, portanto, que possibilita a uma expressão linguística o status de texto.

E o que faz um texto ser bom?

Todo texto pertence a algum gênero textual. Gêneros são padrões sociais de uso da língua, determinados principalmente por seus objetivos comunicativos. É esse objetivo comunicativo que determina o estilo de linguagem de cada texto, incluindo “correção gramatical e ortográfica”. O anúncio de classificados é um gênero e tem como propósito comunicativo central apresentar ao leitor um produto a venda. Linguisticamente, nesses textos, é comum a omissão das marcas de coesão, já que eles surgem nos jornais impressos e, nesses veículos, o valor do anúncio é cobrado por caracteres. Assim, a partir de um processo de textualização, o anúncio apresentado cumpre bem a sua função comunicativa, possibilitando a construção textual dos sentidos.

Um bom texto, portanto, resulta de um processo de textualização e cumpre bem o objetivo comunicativo do gênero ao qual pertence. Um bom texto não é aquele que tem “correção gramatical e ortográfica”. Da mesma forma, não existe uma pessoa que “escreve bem”, genericamente. Pessoas produzem bem e com facilidade textos em gêneros com os quais estão familiarizadas, conforme suas necessidades comunicativas.

A língua é uma atividade social, histórica e ideológica que somente ganha vida na forma de textos concretos que circulam nas diferentes esferas da vida em sociedade.

A redação escolar, como a do ENEM, parece considerar o texto como uma compilação de informações sobre determinado tema e como um conjunto de orações ligadas por marcas de coesão. O bom texto, nessa visão reducionista, é o que agrupa orações usando diversificadas marcas de articulação, numa construção linguística marcada por “correção ortográfica e gramatical”. Nesse tipo de prática, os demais fatores de textualidade são prejudicialmente desconsiderados. O interlocutor, a interação, o contexto, a intencionalidade e, principalmente, o objetivo comunicativo são colocados em segundo plano, o que contribui para uma escrita descontextualizada, estruturalmente vinculada a uma “fórmula mágica” e cada vez mais distante da natureza dialógica e interacional que caracteriza a própria linguagem.

A Linguística Textual mostra que a dificuldade de escrever esses textos surge justamente dessa característica da redação: a escolha da forma do texto sem um propósito comunicativo em mente, sem a consideração dos demais fatores que constituem o processo de textualização. Como saber o que escrever sem saber a que objetivo o texto serve? A dificuldade, portanto, não é decorrente de falta de dom do escritor ou da ausência de uma fórmula mágica para escrever bem, mas está na concepção que se tem do que seja um texto.

A língua é uma atividade social, histórica e ideológica que somente ganha vida na forma de textos concretos que circulam nas diferentes esferas da vida em sociedade. Assim, os textos – exemplares de diversos gêneros – são instâncias de interação por meio da língua(gem), sendo, também, os mecanismos que usamos para realizar ações, praticar múltiplas trocas linguageiras e atingir diferentes objetivos comunicativos.

Para saber mais

ANTUNES, I. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

BEAUGRANDE, R. A. de.; DRESSLER, W. Introduction to Text Linguistics. London: Longman, 1981.

BENTES, A. C. Linguística textual. In: Mussalim, F.; BENTES, A. C. (Orgs.). Introdução à Linguística: domínios e fronteiras. V. 1. São Paulo: Cortez, 2001. p. 245-287.
COSTA VAL, M. G. F. Repensando a textualidade. In: AZEREDO, J. C. (Org.). Língua Portuguesa em Debate: conhecimento e ensino. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 34-51.
KOCH, I. G. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997.

KOCH, I. G. V. Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas. São Paulo: Contexto, 2015.