Como desenvolvemos a habilidade oral da fala?

Os componentes do aparelho de produção de fala estão presentes na nossa espécie muito tempo antes de “aprendermos” a falar.

Luciana Lucente · Doutora em linguística, professora da Faculade de Letras da UFMG. Estuda a fala e como a utilizamos na comunicação de nossas intenções.

Em uma premiada propaganda da British Telecon para televisão, veiculada em 1993, o astrofísico Stephen Hawking, por meio de sua voz sintetizada transmitia a seguinte mensagem:

“Por milhões de anos, a humanidade viveu como os animais. Então aconteceu algo que liberou o poder da nossa imaginação. Nós aprendemos a conversar e aprendemos a ouvir. A fala permitiu a comunicação de ideias, permitindo que os seres humanos trabalhem juntos para construir o impossível. As maiores realizações da humanidade ocorreram falando, e suas maiores falhas ao não falar. Não precisa ser assim. Nossas maiores esperanças podem se tornar realidade no futuro. Com a tecnologia à nossa disposição, as possibilidades são ilimitadas. Tudo o que precisamos fazer é garantir que continuemos conversando” [1]

A mensagem do anúncio ficou famosa (inclusive fazendo parte da canção Keep Talking do Pink Floyd) inclusive por Hawking falar por meio de um sintetizador de fala, uma vez que ele não era capaz de produzir a sua voz natural. E os humanos que não possuem nenhum comprometimento em sua capacidade de falar ou de ouvir, como falam? Como após milhões de anos a nossa espécie desenvolveu a habilidade oral da fala?

As crianças começam a falar com mais ou menos um ano de idade e, salvo qualquer intercorrência, não param mais até o final de suas vidas. Nós falamos o tempo todo, falamos com outras pessoas, falamos com nossos animais de estimação e até sozinhos. O ato de falar é tão presente em nossas vidas que quase nunca paramos para pensar sobre isso. Em minhas aulas de fonética, uma das primeiras perguntas que faço aos alunos é “como nós falamos?”, e muitos respondem “nós falamos com a boca”, outros “nós respiramos e vamos falamos”. Sim, mas não tão simples assim.

As crianças começam a falar com mais ou menos um ano de idade e, salvo qualquer intercorrência, não param mais até o final de suas vidas. Nós falamos o tempo todo, falamos com outras pessoas, falamos com nossos animais de estimação e até sozinhos.

A primeira revelação sobre esse assunto costuma ser a de que que nosso sistema fonador não se desenvolveu no corpo humano tendo como finalidade a fala, e sim com a finalidade de respiração, e também de alimentação.

Para falarmos precisamos ativar nosso sistema respiratório (pulmões e diafragma), nosso sistema laríngeo (a laringe propriamente dita) e o sistema supralaríngeo (cavidades oral e nasal). Na nossa cavidade oral contamos com lábios, dentes, mandíbula e língua, cujas funções são a mastigação, a sucção e a sensação de sabor dos alimentos. Não esquecendo que nossos dentes desempenharam por muitos anos também uma função de defesa na nossa espécie.

Os componentes do aparelho de produção de fala presentes no corpo humano têm centenas de milhões de anos e estão presentes na nossa espécie muito tempo antes de “aprendermos” a falar. De acordo com a perspectiva evolucionista de Darwin, o sistema respiratório, que usamos como fonte de energia para a fala, originalmente servia como dispositivo de flutuação em peixes e passou a ser um sistema vital de troca gasosa em animais quando estes passaram a habitar o meio terrestre.

Os componentes do aparelho de produção de fala presentes no corpo humano têm centenas de milhões de anos e estão presentes na nossa espécie muito tempo antes de “aprendermos” a falar.

Portanto, nenhum dos componentes do aparelho fonador teria evoluído inicialmente para fins de fala. Porém, como em ciência nada é consenso, para o foneticista John Laver, um dos músculos que compõe a laringe, denominado cricoaritenóideo posterior, tem como função especifica a produção da fala.

Voltando à nossa perspectiva inicial, quando falamos uma frase como “O bolo está no forno”, a título de exemplo, uma quantidade de ar deve sair de nossos pulmões, pressionado pelo músculo diafragma, atravessar a nossa laringe com pressão suficiente para fazer as pregas vocais, que se situam dentro da laringe, vibrarem em uma frequência suficiente para produzir som. É um mecanismo parecido com o de produzir som quando esticamos a ponta aberta de um balão de festa cheio de ar.

Esta primeira etapa da produção da fala oral, em que produzimos o som da fala, envolve os sistemas respiratórios e o laríngeo. É interessante notar que as pregas vocais (e não cordas vocais, como são popularmente conhecidas) são originalmente parte de uma válvula que previne a entrada de água nos pulmões, mas que receberam o nome de pregas vocais devido à sua utilização para a produção da fala.

Para falarmos e para nos mantermos falando, como desejava Hawking em sua mensagem, nós nos servimos de uma estrutura que nosso corpo já dispunha há milhões de anos para outras funções. Essa habilidade também se aplica quando falamos línguas de sinais, afinal nossas mãos e braços também não se desenvolveram na nossa espécie com finalidade linguística.

O próximo passo para a produção da nossa frase ocorre na boca e no nariz, que funcionam como filtros que moldam o som oriundo das pregas vocais. Por exemplo, utilizamos nossos lábios superior e inferior para produzir o som “b”, lábio inferior e dentes superiores para produzir o som “f”, para a produção das vogais “o” e “a” da nossa frase exemplo, nossa língua, lábios e mandíbula têm que estar em posições específicas: língua suspensa e recuada para o fundo da boca, mandíbula suspensa e lábios arredondados resulta em um som “o”, enquanto língua abaixada e centralizada na boca, mandíbula abaixada e lábios estirados resultam em um som “a”. Para produzir um som nasal, como “n”, além de posicionarmos nossa língua na parte posterior dos dentes, nós ainda abaixamos o véu palatino, que é a parte “mole” do céu da boca, para a passagem do ar pelo nariz. Quando não estamos falando essa membrana permanece abaixada, para a passagem do ar até os pulmões.  

Resumindo, para falarmos e para nos mantermos falando, como desejava Hawking em sua mensagem, nós nos servimos de uma estrutura que nosso corpo já dispunha há milhões de anos para outras funções. Essa habilidade também se aplica quando falamos línguas de sinais, afinal nossas mãos e braços também não se desenvolveram na nossa espécie com finalidade linguística. Entretanto, é muito provável que essa inteligência, ou poder de nossa imaginação, para dispor de outras estruturas do nosso corpo para a fala, seja resultado de nossa capacidade linguística única.


[1] No original: For millions of years, mankind lived just like the animals. Then something happened which unleashed the power of our imagination. We learned to talk and we learned to listen. Speech has allowed the communication of ideas, enabling human beings to work together to build the impossible. Mankind’s greatest achievements have come about by talking, and its greatest failures by not talking. It doesn’t have to be like this. Our greatest hopes could become reality in the future. With the technology at our disposal, the possibilities are unbounded. All we need to do is make sure we keep talking