Como os bebês argumentam?

A argumentação pode ser compreendida como uma estratégia de linguagem para lidar com o conflito

Angelina Nunes de Vasconcelos · Angelina Nunes de Vasconcelos é Psicóloga e doutora em Linguística e estuda como bebês desenvolvem a linguagem, especialmente a argumentação.

Imagine a seguinte situação: um bebê de 6 meses de idade está deitado de barriga para baixo em um tapete emborrachado diante de vários brinquedos, brincando. Sua mãe então afasta os brinquedos dele e o observa. O bebê, por sua vez, ergue-se em quatro apoios, olha para os brinquedos e estica um dos braços tentando alcançá-los. Mas o bebê não consegue, chega a tocar em um dos brinquedos com a ponta dos dedos, mas termina por afastá-lo para ainda mais longe. O bebê então faz uma expressão de choro, balança o corpo e começa um balbucio cadente e choroso, ao que sua mãe responde “eita que reclamação! diga mamãe você não vai não pegar é?”.

Diante desta pequena cena, você diria que este bebê expressou uma vontade? manifestou um ponto de vista? ou que ele se opôs a ação da mãe? Que o bebê expressou um desconforto ou que dirigiu uma demanda ao adulto?

A argumentação pode ser compreendida como uma estratégia de linguagem para lidar com o conflito, sendo caracterizada como ferramenta para negociação entre perspectivas divergentes.

Um dos objetivos deste texto é que, após lê-lo, você ao menos considere a possibilidade de responder “sim” a algumas ou todas as questões acima levantadas. A partir da cena acima retratada, ilustra-se como o bebê, desde muito cedo, faz uso de expressões faciais, olhares, ações, movimentações corporais e vocalizações para se comunicar com o adulto. No exemplo que demos, o bebê em questão fez uso de uma diversidade de ações para expressar sua frustração e, segundo a interpretação da própria mãe, se opor à ação materna (que afastou os brinquedos para longe do alcance da criança). Através deste exemplo, busca-se ilustrar como diversas produções infantis são interpretadas desde muito cedo como oposições – elemento central da argumentação– tais como o choro, expressão facial, ações, gesto, vocalização e, finalmente, a fala, quando a criança começa a produzir os primeiros ‘nãos’ e expressões opositivas (por volta dos 12-15 meses de idade).

Mas, afinal, o que é a argumentação? A argumentação pode ser compreendida como uma estratégia de linguagem para lidar com o conflito, sendo caracterizada como ferramenta para negociação entre perspectivas divergentes. Para argumentação existir são necessários três elementos: 1) Argumento (um ponto de vista e seus elementos de apoio); 2) Contra-argumento (oposição e desafio ao argumento) e 3) Resposta (reações ao contra-argumento). E a argumentação com bebês? Quem já conviveu ou já observou bebês em interação com adultos observou como estes estão constantemente interpretando as ações infantis e colocando “palavras na boca” das crianças. Estas ações e balbucios infantis, interpretados pelo adulto, são considerados precursores dos elementos argumentativos. Pois, a partir da interpretação constante do adulto, tais elementos (choro, olhares e expressões) começam a adquirir significados específicos para a criança, se estruturando e estabilizando ao longo do tempo enquanto “formas de se opor”, “de protestar”, “de expressão negação”.

Portanto, destacam-se aqui a importância da interpretação constante dos adultos, que devem estar atentos a todo gesto e ação da criança, por mais sutis que estas sejam. Além disso, não só as interpretações constantes e repetidas do adulto são importantes para o desenvolvimento das capacidades de expressão da criança, mas também o modo como eles se dirigem e se comunicam com a criança. No que diz respeito especificamente à oposição (elemento central para o desenvolvimento da argumentação), o modo como o adulto se opõe a criança – proibindo determinadas ações e comportamentos, repreendendo-a, através de determinadas expressões faciais, contenção física (como segurar a criança ou impedir a movimentação infantil) e características específicas da fala materna (uso de voz mais firme, mas intensa e maior altura) criam um contexto de repreensão que possibilita a apreensão pela criança do sentido do ‘não’, por exemplo. Variações na altura, aumento na intensidade e na duração da pronúncia de determinadas palavras são características apreendidas desde muito cedo pela criança, possibilitando a diferenciação de significados positivos e negativos, por exemplo.

O modo como o adulto se opõe a criança – proibindo determinadas ações e comportamentos, repreendendo-a, através de determinadas expressões faciais, contenção física (…) e características específicas da fala materna (…) criam um contexto de repreensão que possibilita a apreensão pela criança do sentido do ‘não’, por exemplo.

Do mesmo modo, estes elementos auxiliam o adulto no momento da construção de suas interpretações. Os choros da criança, por exemplo, são também interpretados de maneira diferenciada pelos adultos em decorrência de suas características específicas. Determinados tipos de choro são interpretados como legítimos, ou seja, como expressando desconforto ou incômodo, enquanto outros são interpretados como choro de ‘manha’ ou ‘choramingo’, normalmente utilizado para ‘chamar a atenção’. Desse modo, nem todo choro é interpretado pelos adultos como negações, mas somente aqueles com características específicas, como duração mais longa e maior intensidade.

Como a escola pode ensinar o bebê a argumentar?

Defendi em outros trabalhos (que indico na seção Para saber mais, adiante) a possibilidade e necessidade de inserir o trabalho com a argumentação desde os momentos mais inicias da educação infantil, já com bebês, tal com apontado na própria Base nacional comum curricular BNCC (2019), documento que elenca a argumentação como uma das competências a serem desenvolvidas na educação básica. A argumentação constitui importante aliada para o desenvolvimento do pensamento reflexivo, ou seja, para o desenvolvimento da capacidade de refletir sobre as próprias opiniões e posições, auxiliando na formação de alunos mais críticos e reflexivos.

Professores neste cenário podem fornecer suporte para seu desenvolvimento tanto a partir de situações espontâneas, por exemplo, nos momentos de alimentação ou banho, nos quais as crianças normalmente se recusam a realizar atividades ou compartilhar materiais, incentivando-as a argumentar; quanto atividades planejadas como jogos, brinquedos e histórias, através de um trabalho planejado em torno do desenvolvimento de competências argumentativas. Assim, o adulto pode explorar estes momentos para engajar a criança no processo argumentativo. Brinquedos de encaixe, por exemplo, podem ser utilizados para explorar situações em que as crianças lidam com a oposição – elemento central para a argumentação. Tanto a oposição do próprio brinquedo (visto que as peças só permitem encaixe em lugares específicos) quanto dos colegas, que usualmente disputam peças e objetos. Brinquedos e jogos como estes oferecem oportunidades para lidar com a frustração e oposição, permitindo o desenvolvimento de estratégias para defesa do próprio ponto de vista e oposição aos demais.

A argumentação constitui importante aliada para o desenvolvimento da capacidade de refletir sobre as próprias opiniões e posições, auxiliando na formação de alunos mais críticos e reflexivos.

Entretanto há também a necessidade de promover formações com professores da educação infantil, capacitando-os a observar e desenvolver situações argumentativas espontâneas e planejadas. Pois, embora os jogos e situações sugeridas tenham o potencial de promover a argumentação, não a asseguram, sendo necessária a mediação do adulto que pode atuar explicitando o conflito de maneira verbal, ou seja, colocando as ações infantis em palavras, evidenciando justificativas e/ou sugerindo resoluções. Ressalta-se como o adulto deve buscar promover papel ativo da criança, evitando ações discursivas demasiadamente diretivas, como o uso de verbos no imperativo, ordens e desenvolvendo estratégias como, por exemplo, o questionamento constante das ações infantis, provocando a argumentação.

Para saber mais:

VASCONCELOS, A. N. de. Argumentação e desenvolvimento cognitivo: emergência e estabilização de condutas protoargumentativas. 141f. Dissertação (Mestrado em Psicologia cognitiva). Universidade federal de Pernambuco. Recife-PE. 2013.

VASCONCELOS, A. N. de; LEITÃO, S. Desenvolvimento da protoargumentação na interação adulto- bebê. ALFA: Revista de Linguística, São Paulo, n. 60, 2016 p. 119-146.

VASCONCELOS, A. N. de; Emergência da negação e prosódia: estudo de casos de uma criança brasileira e uma criança francesa. 218f. Tese (Doutorado em Linguística). Instituto de estudos da linguagem, Universidade estadual de Campinas. Campinas-SP, 2017.

VIEIRA, A. J. Condutas argumentativas na fala infantil: Um olhar sobre a constituição da subjetividade. In: DEL RÉ, A; ROMERO, M. (orgs.) Na língua do outro: estudos interdisciplinares em aquisição de linguagens. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2012, p.15-35.