Como escrevemos e pronunciamos palavras emprestadas no português brasileiro?

A pronúncia é, na verdade, a referência para a adaptação ortográfica

Gean Nunes Damulakis · Gean Damulakis é doutor em Linguística. Estuda como a mente humana representa e percebe os sons da fala e como esses sons são produzidos pelos falantes. Pesquisa línguas indígenas brasileiras e ensino de língua materna

“Essa palavra já (ainda não) foi aportuguesada?” Muitos de nós já fizemos ou ouvimos uma pergunta semelhante. Apesar de muita gente se referir ao aportuguesamento como sendo a adaptação de uma palavra à ortografia do português, muitas vezes formalizado e finalizado com a admissão da forma adaptada a um dicionário da língua, esse fenômeno é muito mais corriqueiro do que imaginamos, pois ocorre também (e principalmente) na pronúncia. Na maior parte das vezes, a pronúncia é, na verdade, a referência para a adaptação ortográfica. A maioria dos falantes de uma língua tende a fazer algum tipo de adaptação a itens lexicais vindos de outra língua, e isso não é diferente para nós, falantes de português do Brasil (PB). Esses pequenos reparos são decorrentes de exigências próprias da língua materna do falante, muitas vezes distintas das encontradas na língua da qual se pega a palavra emprestada, como um som (vogal ou consoante) ou um tipo de sílaba inexistente em sua língua. Chamamos de ‘nativização’ esse conjunto de reparos que modifica, na pronúncia, palavras estrangeiras, deixando-as com características sonoras da língua nativa. Esses reparos se dão, sobretudo, através da substituição de sons e da modificação de sílabas (e do número de sílabas). Apenas para facilitar a exposição, referimos ao processo de adaptação na ortografia como “aportuguesamento” e, na pronúncia, como “nativização” (mesmo que pudéssemos dizer que o aportuguesamento é a nativização típica de falantes de português, às vezes acompanhada pela adaptação ortográfica).

Todas as línguas fazem, em maior ou menor grau, adoção de empréstimos de outras línguas. O empréstimo lexical, como fenômeno de adoção de itens de vocabulário de outra língua, é uma das consequências possíveis do contato entre grupamentos humanos falantes de línguas diferentes, como nas situações de regiões de fronteira ou de falantes de línguas distintas vivendo no mesmo espaço geográfico. Muitas vezes, porém, esses empréstimos decorrem de uma situação em que os falantes das línguas em questão não têm contato direto, mas apenas através de outras fontes, como livros, músicas, filmes (ou produtos culturais em geral) e, mais recentemente, mídias sociais. É o caso da maior parte dos empréstimos recentes do inglês no português do Brasil (e em muitas outras línguas pelo mundo, devido a fatores geopolíticos).

Chamamos de ‘nativização’ esse conjunto de reparos que modifica, na pronúncia, palavras estrangeiras, deixando-as com características sonoras da língua nativa. Esses reparos se dão, sobretudo, através da substituição de sons e da modificação de sílabas (e do número de sílabas).

Na escrita, é muito comum escrevermos as palavras em itálico para destacarmos que elas não pertencem ao nosso vocabulário nativo e que ainda não foram adaptadas aos nossos padrões ortográficos. Esse recurso tipográfico deixa de ser adotado a partir do momento em que o termo está (ortograficamente) aportuguesado. Mais recentemente, os empréstimos do inglês são tão frequentes e numerosos que muita gente já não mais se utiliza desse expediente ao escrever. Além do fator número, mesmo que o usuário quisesse usar itálico, em muitos meios não é oferecida essa possibilidade, como em um comentário em redes sociais, por exemplo. O uso frequente na forma original também pode esvaziar o status estrangeiro da palavra (poucos brasileiros escreveriam ‘internet’ em itálico, por exemplo; na verdade, o dicionário Houaiss, que adota o itálico para verbetes não aportuguesados, também não faz isso para esse item); talvez o uso do itálico com esse fim sobreviva na escrita de poucas pessoas, em certos tipos de textos, sobretudo os mais formais, como na entrada de dicionários. Há aportuguesamentos que vingaram, como ‘esporte’[1] (de sport) e ‘surfe’ (de surf), por um lado, e há outros que, apesar de figurarem em dicionários, poucos brasileiros usam em suas escritas. Podem ser encontradas no dicionário Houaiss, por exemplo, ao lado das grafias da língua original, palavras aportuguesadas como ‘esqueite’, ‘estande’ e ‘espote’, mas muitos brasileiros apenas conhecem (ou preferem escrever) as formas skate, stand e spot, respectivamente. No dicionário, esses pares de palavras são remetidas uma a outra (ou seja: ao se procurar o que significa spot, o dicionário recomenda consultar ‘espote’).

Entretanto, apesar de grafias paralelas, essas palavras têm a mesma pronúncia para os brasileiros. Ou seja: apesar de as grafias distintas parecerem indicar o contrário, na fala da maior parte dos brasileiros, stand e ‘estande’ são pronunciados da mesma maneira: com a vogal “i” (ou “e”) no início e no final dessas palavras, formando três sílabas. O mesmo vale para – skate e ‘esqueite’, e spot e ‘espote’. Note-se que na língua de origem as três palavras têm apenas uma sílaba: [skejt], [stænd] e [spɑt]. Isso ocorre porque o português do Brasil não permite que sílabas comecem com um encontro consonantal desse tipo (“sp”, “sk”, “st” etc.) nem que terminem em consoantes diferentes dos sons consonantais representados na escrita por “r”, “s”, “l” e “n” (ou “m”). Com outras consoantes (como os sons consonantais “p”, “t”, “k” etc.), o falante de PB providencia uma vogal (normalmente o som “i”, representado na escrita majoritariamente por “e” em adaptações ortográficas) depois da consoante, formando mais uma sílaba, no final; e no início da palavra, faz algo semelhante antes do “s”. Em outras palavras: mesmo que não esteja representada na escrita, a palavra sofre adaptações na fala, decorrentes de propriedades da fonologia do PB. A fonologia é a área da linguística que estuda, entre outras questões, o comportamento dos sons da língua e a possibilidade de combinação desses sons em sílabas. A inserção de “i” (ou “e”) no início é muito antiga na língua, presente em itens herdados já do latim: ‘espetáculo’ (spetaculum), ‘escola’ (schola) etc.

Empréstimos: divergências entre grafia e pronúncia 

Percebemos que a ortografia adaptada de palavras estrangeiras, sobretudo nas redes sociais, nem sempre é uma coisa exigida, uma vez que muita gente usa a ortografia da língua fonte. Entretanto, nem sempre é bem-vinda a falta de adaptação na pronúncia. Se uma pessoa procurar pronunciar uma palavra estrangeira da maneira mais próxima do original, fazendo o que se poderia chamar de “falar em itálico”[2], tal comportamento pode soar pedante em diversos contextos. Excetuando-se contextos bem específicos (um professor de língua estrangeira conversando com a turma, pode preferir falar com pronúncia original de empréstimos, sobretudo os recentes) e questões pessoais, a maioria de nós prefere criar sílabas mais simples e um dos recursos mais usados é o acréscimo do “i”, dividindo a sílaba original em duas (ou três), como exemplificado acima. Dessa forma, parece haver uma assimetria na etiqueta linguística no uso de empréstimos: enquanto a adaptação, em contextos informais, é esperada na fala, não o é na escrita. Na canção abaixo, assim como nos exemplos anteriores, as palavras top e look, diferentemente da língua fonte, têm, na nossa pronúncia, duas sílabas cada, graças à ajuda do “i” acrescentado ao final. A palavra Facebook, por sua vez, conta na origem com apenas duas sílabas e tonicidade na primeira [ˈfejs.buk], mas brasileiros que não estejam falando em itálico pronunciam com quatro, com tônica na sílaba “bu” (mantendo o padrão paroxítono, mais frequente no PB): [fej.si.ˈbu.ki]. Vejamos o trecho do funk:

Ela não anda, ela desfila

Ela é top, capa de revista

É a mais mais, ela arrasa no look

Tira foto no espelho pra postar no Facebook

(É top; MC Bola)

Esse fenômeno de corrigir palavras com características pouco toleradas pelo PB, embora tão corriqueiro em empréstimos, pode ocorrer também em palavras nativas. Como bem lembra o linguista Mattoso Câmara, palavras como ‘pacto’ e ‘digno’, soam, na boca da maior parte dos brasileiros, como proparoxítonas: páquito e díguino, respectivamente. É justamente essa inserção da vogal que possibilita as variações de pronúncia no PB, por exemplo, no presente do verbo ‘indignar-se’: alguns dizem “(eu me) indíguino”, outros “(eu me) indiguíno”. Embora a norma culta privilegie a primeira pronúncia, não são comuns proparoxítonas no português em verbos nessa conjugação (como na primeira pessoa do presente do indicativo e, consequentemente, do presente do subjuntivo)[3]. Por esse motivo, alguns falantes preferem tornar tônica a nova sílaba, formada com o ‘i’ inserido, conformando o verbo ao padrão paroxítono, mais regular nessa conjugação. O mesmo vale para verbos como “optar”, “impregnar” ou “adaptar(-se)”: “sou uma pessoa que se adápita/adapíta fácil a novidades”. O PB também não permite sequências consonantais como essas no início de palavras, que também costumam receber inserção de “i” na fala dos brasileiros: g[i]nomo, p[i]sicólogo, p[i]neu.

A palavra Facebook, por sua vez, conta na origem com apenas duas sílabas e tonicidade na primeira [ˈfejs.buk], mas brasileiros que não estejam falando em itálico pronunciam com quatro, com tônica na sílaba “bu” (mantendo o padrão paroxítono, mais frequente no PB): [fej.si.ˈbu.ki].

Vale ressaltar, no entanto, que essas adaptações nem sempre afetam a palavra como um todo, podendo atingi-la apenas em parte. Várias palavras com “u” do inglês são pronunciadas com “â” [ə] (usado no PB quase que exclusivamente para itens emprestados do inglês, como indicado em Damulakis & Nevins, 2017): blush, rush, bug, hub, crush, nugget etc. Note-se que, embora muitos brasileiros falem com “â” [ə] essas palavras, costumam colocar também o “i” no final (criando mais uma sílaba) e fazer um “r” de ‘cara’ em crush e um “r” de ‘carro’ em rush, que em inglês são ambos o mesmo som: próximo do nosso “r” caipira. Assim, apesar de a vogal “â”, equivalente a um ‘xuá’ [ə] ou schwa, vogal mais próxima que temos de [ʌ] do inglês, de rush, blush, parecer dar um status de empréstimo a algumas palavras, elas podem sofrer outras correções na fala. Ressalve-se, no entanto, que essa adaptação para “â” pode variar com “ã” para alguns falantes: blâsh ~ blãsh, nâgget ~ nãgget, râsh ~ rãsh etc. (leia-se “~” como “oscila com”). Como notam os mesmos autores, o “a” na ortografia de várias palavras do inglês passa a “é” [ɛ] (no PB, a mais próxima da vogal [æ] do inglês) em PB: flash, trash, cash, rack; essas palavras são nativizadas como fléchi, tréchi, quéchi[4]e réqui, novamente com “i” presente na pronúncia.

Ainda em relação ao acréscimo do “i”, caso menos frequente, por depender de condições especiais, é a sua ocorrência entre o “s” e a outra consoante. Nesses casos a incorporação na escrita é mais rara, mas pode acontecer em itens como “Sri Lanka”, no qual “Sri” é pronunciado como “Sirí”. O “i” é inserido depois do “s” (e não antes, como nos outros casos acima), porque o “r” de ‘cara’ não pode ocorrer depois de “s” no PB, apenas o “r” de carro (como em ‘Israel’). O “i” inserido nessa palavra também pode receber tonicidade (na pronúncia, claro!), quando na sequência “Síri Lánka”, para evitar a proximidade de duas sílabas tônicas. Foi a inserção de “i” depois do “s” que resultou em ‘sinuca’, forma que acabou entrando para o dicionário (e para o nosso vocabulário), a partir de snooker.

Variando na grafia de empréstimos

Ainda em relação a palavras emprestadas em PB, vale citar o fenômeno que pode ser denominado de ‘grafia espontânea’, forma escrita corrente, usada pela maior parte dos brasileiros, que difere tanto da forma grafada na língua de origem quanto daquela que figura nos dicionários do PB. Se pegarmos classificados de aluguel e venda de imóveis, encontraremos alguns anúncios de ‘kitnet’. Essa grafia é muito provavelmente possibilitada pela existência e uso corrente das palavras kit e net na nossa escrita, ambas encontradas no Houaiss. A grafia ‘kitnet’ se distancia tanto da origem (kitchenette) quanto da forma aportuguesada encontrada no VOLP[5] (‘quitinete’). Tanto kitchenette quanto ‘quitinete’ são encontradas no Houaiss, o que não acontece com ‘kitnet’, embora seja esta a forma mais usada na escrita, ao menos na internet. Numa rápida pesquisa na rede, verificamos que a palavra ‘kitnet’ tem mais de 4 milhões e 800 mil ocorrências no Google contra 1 milhão e 800 mil de ‘quitinete’ (em 18 de agosto de 2020). Numa busca, na mesma data, por “quitinete/kitnet no centro”, encontramos 70.700 ocorrências com ‘kitnet’ contra apenas 21.110 com ‘quitinete’, numa proporção de ‘quitinete’/‘kitnet’ em torno de 3:10. Vale lembrar que o termo mais frequente na escrita, embora não mostre na grafia, não deixa de se nativizar na pronúncia: kit[i]net[i], com a inserção de dois ‘ii’ e, em certos dialetos, com a chamada palatalização de “t” (como a pronúncia “tch” em tchau, dando em algo como quitchinétchi), processos que não ocorreriam nos originais kit e net, no inglês.

A grafia ‘kitnet’ se distancia tanto da origem (kitchenette) quanto da forma aportuguesada encontrada no VOLP (‘quitinete’). Tanto kitchenette quanto ‘quitinete’ são encontradas no Houaiss, o que não acontece com ‘kitnet’, embora seja esta a forma mais usada na escrita, ao menos na internet

Também o aportuguesamento pode ser espontâneo (e deliberado), acontecendo na escrita de alguns usuários mesmo que não haja recomendação de um referencial balizador, como o VOLP ou um dicionário. Esses usos, em verdade, se consagrados, podem levar a forma a figurar em dicionários. O trecho a seguir é de um texto escrito por Eduardo Affonso, publicado em seu perfil no Facebook[6], em 06/08/2020, e que circulou na internet durante a pandemia:

Minha primeira laive eu quis fazer onde? Na sala. Na frente da estante. Porque é o lugar mais luminoso e porque a parede verde, as prateleiras brancas e os livros multicoloridos fariam um fundo bacana.

Quis o Destino que meu uaifai não pegasse lá. Já reclamei com a Net, mas reclamar com a Net é como pedir que não haja blitz sexta-feira na Lagoa-Barra ou ao copo que escorregou da mão que não se espatife quando quicar no chão. (Eduardo Affonso, 06/08/2020; destaques nossos)

Uma vez que (ainda) não existe uma adaptação ortográfica consagrada, as palavras que destacamos no trecho acima em negrito foram adaptadas às regras ortográficas do português pelo próprio autor do texto: ‘laive’, em vez de live[7]; ‘uaifai’, em vez de wifi. Há diversos exemplos de palavras espontaneamente adaptadas à nossa ortografia. Esse fenômeno pode ocorrer por desconhecimento – afinal, ninguém é obrigado a saber a ortografia da palavra em inglês (ou outra língua estrangeira), muitas vezes apenas ouvida – ou pode ser intencional, como no caso do trecho acima. Isso pode conferir ao texto algumas características, como a vontade do usuário de mostrar uma demarcação de identidade linguística, por exemplo, mas isso já seria motivo para outro artigo.

Para saber mais

BECHARA, Evanildo (coord.) (2017). Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 6.ª edição. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras. Disponível em https://www.academia.org.br/nossa-lingua/busca-no-vocabulario.

CAMARA Jr, Joaquim Mattoso. Estrutura da Língua Portuguesa. Editora Vozes: Petrópolis, 1970 [2005].


DAMULAKIS, G. N.
NEVINS, A. I. Entre gramáticas: empréstimos linguísticos e aprendizagem de línguas. Revista Linguística, v. 3, p. 5-18, 2017.

FREITAS, Myrian Azevedo de; NEIVA, Aurora M. S.. Estruturação silábica e processos fonológicos no inglês e no português: empréstimos e aquisição. Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL. V. 4, n. 7, agosto de 2006. ISSN 1678-8931.   


[1] As palavras aportuguesadas vão aqui em aspas simples. As palavras na grafia da língua original e transcrições fonéticas (com base na nossa ortografia) estão em itálico.

[2] Em algumas análises linguísticas, isso pode equivaler ao que se chama de code-switching ou “alternância de código”.

[3] A concorrência entre essas duas variantes em verbos nesse formato acontece, na verdade, em todas as formas verbais ditas rizotônicas, ou seja, aquelas em que a sílaba tônica fica na raiz do verbo.

[4] As adaptações ortográficas tentam manter certa regularidade. Assim, o <sh> do inglês passaria, se adaptado sob os mesmos critérios, a <x>, como em ‘xampu’, ‘xerife’ etc. Então, a mais provável adaptação ortográfica seria: ‘flexe’, ‘trexe’ e ‘quexe’.

[5] Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.

[6] Muita gente aportuguesa (espontaneamente) o truncamento dessa rede social para ‘Feice’.

[7] A palavra live (ou ‘laive’), embora não tenha surgido no PB durante a pandemia da COVID-19, chegou aos ouvidos (e à boca) de um número maior de brasileiros nessa época, devido à proliferação então dessa modalidade de transmissão pela internet.