Como assim, “fique em casa” e “o Brasil não pode parar”? O diálogo de vida e morte em tempos de pandemia no Brasil

O diálogo de vida e morte em tempos de pandemia no Brasil na perspectiva do Círculo de Bakhtin.

Luciane de Paula e Ana Carolina Siani · Luciane de Paula é doutora em Linguística e Língua Portuguesa. Professora na Universidade Estadual Paulista – UNESP, estuda discursos de arte, mídia e política. Ana Carolina Siani faz doutorado em Linguística e Língua Portuguesa na Universidade Estadual Paulista – UNESP com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Ela estuda as relações de raça, gênero e classe em Harry Potter.

Quantas vezes já ouvimos essas duas expressões ultimamente? Perdemos as contas. Mas, afinal, o quanto a linguagem revela valores contraditórios de proteção ou de indiferença à vida, agrava ou ameniza a crise de saúde pública, defende a vida ou a morte em nome da economia e se torna arena de disputa entre sujeitos e sentidos?

A linguagem é viva e nos permite nos relacionarmos com o outro e com o mundo pela participação em um grande embate de pontos de vista (concordantes e discordantes). Estabelecemos contato com outros sujeitos e valores de maneira não indiferente, pois até quando queremos nos abster da vida, esse é o nosso posicionamento e participação ativos. A linguagem revela quem somos.

Para o Círculo de Bakhtin, como ficou conhecido o grupo russo que produziu esse pensamento que chamamos de dialógico, todo ato de linguagem manifesta um confronto de ideias entre sujeitos, com suas visões de mundo. Para os autores, o enunciado é o solo concreto da linguagem porque revela nossos posicionamentos (VOLÓCHINOV, 2017; MEDVIÉDEV, 2012).

Para Bakhtin (2011), todo enunciado é uma resposta e expressa uma posição. Desde o nascimento, respondemos aos outros. Nesse sentido é que dizemos que todo discurso é dialógico. Para ilustrarmos esse diálogo como embate de ideias, pensamos em algumas posturas do presidente Bolsonaro sobre a pandemia do coronavírus no Brasil e o que o estudioso Mbembe chama de “necropolítica”, uma política a favor da morte, como analisamos no artigo “Uma análise bakhtiniana da necropolítica brasileira em tempos de pandemia” (PAULA; SIANI, 2020), publicado na Revista da Abralin.

Com a pandemia, as medidas de segurança se transformaram em uma arena entre sujeitos e valores, enfatizando a polarização entre direita e esquerda brasileiras, tão marcante nesse contexto sócio-histórico.

As práticas de isolamento e distanciamento foram recomendadas como caminhos de contenção do coronavírus. Com isso, enunciados como “fique em casa” foram veiculados em campanhas, viralizados na internet e replicados pela população.

Alguns posicionamentos de Bolsonaro, contudo, foram contrários às medidas sanitárias de distanciamento e isolamento sociais, em nome da economia, como nos dois pronunciamentos destacados:

1. “Esse vírus trouxe uma certa histeria. Tem alguns governadores (…) que estão tomando medidas que vão prejudicar e muito a nossa economia” (UOL, 17/03/2020);

2. “Pelo meu histórico de atleta, (…), não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria acometido, quando muito, de uma gripezinha ou resfriadinho (…)” (BBC, 24/03/2020).

O uso das palavras “histeria”, “gripezinha” e “resfriadinho” como nomeações à reação e à infecção por coronavírus revela uma amenização da pandemia (marcada pelos diminutivos) e uma banalização das recomendações sanitárias (vistas como exagero – “histeria”). As construções de linguagem revelam o que pensamos. No caso das declarações do presidente, a desvalorização da vida e a importância da economia.

Os atos de Bolsonaro de participação em aglomerações estimularam um grupo de apoiadores a se manifestar contra o isolamento e o distanciamento social (minimizando a gravidade da COVID-19, desrespeitando os protocolos de segurança, organizando e participando de festas, veiculando fake news, realizando carreatas pela abertura do comércio etc.), ligado a enunciados como “O Brasil não pode parar”, que se tornou campanha do governo federal, em oposição ao movimento “fique em casa”.

A partir dessa ilustração, compreendemos como a morte e a vida estão em diálogo, a depender dos valores dos sujeitos (eu-outro) e seus discursos. A indiferença de Bolsonaro com a morte, revelada em declarações e atos, demonstra seu projeto de poder, fincado na morte, em nome da economia (mesmo que, para isso, morram pessoas). Como ele também disse sobre o número de óbitos no país: “E daí?  Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre” (UOL, 2020).

A indiferença é um ato e possui valor. A falta de ação do presidente é uma ação política de morte, pois todo dizer é um fazer e entre vidas entendidas como números (CPFs) e empresas (CNPJs) lucrativas, o presidente não titubeia em defender o capital.

E você, “fique em casa”. O Brasil não está parado.

Referências

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BBC. BBC Brasil, 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52205918. Acesso em: 01 dez 2020.

PAULA, L. de; SIANI, A. C. Uma análise baktiniana da necropolítica brasileira em tempos de pandemia. Revista da ABRALIN, v. 19, n. 3, p. 475-503, 17 dez. 2020. Disponível em: https://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/view/1595. DOI: https://doi.org/10.25189/rabralin.v19i3.1595.

MEDVIÉDEV, P. M. O método formal nos estudos literários: uma introdução crítica a uma poética sociológica. São Paulo: Contexto, 2012.

UOL. UOL, 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/01/todos-nos-vamos-morrer-um-dia-as-frases-de-bolsonaro-durante-a-pandemia.htm. Acesso em: 01 dez 2020.

VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem. Rio de Janeiro: 34, 2017.