Língua dos pais ou do país?

Questões sobre língua materna e língua de herança.

Daniella Ringhofer · Daniella Ringhofer é doutoranda na Universidade de Viena e pesquisadora na área de Português como Língua de Herança com ênfase em avaliação. É também professora no Ensino Fundamental II e Ensino Médio na rede pública de Viena, Áustria e mãe de duas crianças bilíngues.

Quando alguém por algum motivo resolve deixar o seu país de origem, surgem inúmeras dúvidas. Como será minha nova vida? Vou me adaptar? Vou me comunicar bem na língua do país? Como superarei barreiras culturais? E os meus (futuros) filhos? Eles falarão a minha língua ao frequentarem as escolas do país? Ou: meus filhos continuarão lendo e escrevendo bem na sua primeira língua mesmo não as aprendendo na escola?

Muitas perguntas, algumas respostas. Uma delas pode ser resumida em: depende, em grande parte, de você mesmo. Vamos nos ater aqui principalmente às últimas perguntas: crianças, adolescentes, bilinguismo (ou plurilinguismo) e interculturalidade através suas convivências saudáveis e plenas entre culturas. Queremos também contar um pouco do que muitas vezes acontece mundo afora, dando uma ênfase especial às soluções apresentadas na Áustria.

Aprender a língua do país é um ato de integração

Sabemos que grande parte da população mundial domina até certo ponto a língua inglesa. Lançamos mão dela numa viagem a turismo, algumas vezes no trabalho, na universidade. Mas e se o inglês não for a língua do país onde se pretende morar? Nesse caso, provavelmente você em algum momento precisará de ajuda de intérpretes. A língua administrativa, usada na maior parte das vezes em ambientes particulares e – o que é muito importante para quem tem filhos – a das escolas públicas é, via de regra, somente a(s) língua(s) do país ou da sua região administrativa. Aprender a língua local é estar aberto à integração, é o primeiro passo para sentir-se cidadão.

E as crianças e os jovens?

Se a criança já nasceu nesse novo país de residência provavelmente, já durante o jardim da infância, terá grande exposição à língua local. Os próprios professores e amigos darão conta do recado. Somado às mídias, à comunicação em um parquinho infantil, às possíveis atividades extracurriculares, é quase impossível uma criança não aprender a língua do país tendo a constante exposição a ela. Aqui vale a reflexão:

Quantas horas por dia a criança tem contato com a língua local? Quantas horas por dia ela é exposta à língua dos progenitores? A boa notícia é: há espaço para ambas as línguas. O bilinguismo é muito mais comum que possamos imaginar. Imagine só: 60 a 70% da população mundial é bilíngue ou plurilíngue.

Segundo estudos relacionados à aquisição da linguagem e neurobiologia, se migramos para outro país já tendo a primeira língua bem estabelecida, a situação muda um pouco. Depende, então, de vários outros aspectos como idade e o já mencionado tempo de exposição às línguas em questão. Em se tratando de adolescentes de Ensino Médio, o pleno domínio do novo idioma é também relacionado ao quão aberto eles estão para dar conta do desafio. Comumente são oferecidas em cursos e escolas aulas de reforço na língua a ser aprendida no novo país, o que de fato parece ser necessário. O que não modifica muito é a vantagem da continuidade do aprendizado formal da primeira língua, da língua ¨de casa¨ e garantir também nesse idioma conhecimentos que vão além da comunicação em ambiente familiar. Isso inclui manter hábitos de leitura, ampliar o vocabulário e, sobretudo, seguir tendo acesso à cultura do país e da família dos quais é parte.

Língua de Herança

Você já ouviu falar em ¨língua de herança?¨ Esse termo se difere de ¨língua materna¨ e   indica a língua transmitida aos filhos pela família no exterior. A língua de herança vem atrelada a princípios de identidade, sentimentos de pertencimento e afeto. Sua transmissão é, em primeiro plano, responsabilidade da família. Sem a vontade e devido investimento familiar, torna-se uma tarefa bem complicada. Entretanto, sozinha, a família pode não ter o sucesso almejado nessa valiosa transmissão. Por isso, hoje fala-se no tripé família/ comunidade/ sistema – uma espécie de pacto mútuo para que sempre os melhores frutos sejam colhidos. O fato é que vale a pena tal investimento, mesmo que possa à primeira vista parecer algo bem desafiador. Uma das formas eficazes de formar crianças bilíngues é manter unicamente a fala com os filhos na língua ¨do coração¨ – o método também chamado “uma pessoa/ uma língua”- de preferência desde o primeiro dia de vida (ou mesmo desde a barriga). As crianças irão não apenas conhecer bem a sonoridade, o léxico e a estrutura desse idioma, mas também reconhecer desde sempre o valor que a família dá a ele. Dependendo do caso, pode ser necessário maior ou menor persistência uma vez que a aquisição da linguagem não se dá de forma linear, assim, algumas vezes os pais precisam de paciência para esperar os ¨saltos¨ na oralidade. Mas os benefícios são incontestáveis e percebidos nos âmbitos não apenas cognitivos, mas também sócio- emocionais.

Alguns países já entenderam a importância do domínio da língua de herança para a construção de um cidadão não somente plurilíngue, mas também mais bem resolvido e consciente.

 Um desses países é a Áustria que, dentro das suas políticas linguísticas, investe em aulas de língua de herança para crianças e jovens em 27 diferentes idiomas. Em um dia da semana, no período vespertino, os alunos se juntam em uma determinada escola com o mesmo objetivo de vivenciar a língua ¨de casa¨ em suas diferentes formas. Aulas de língua de herança já existem de forma gratuita na Áustria desde a década de 70.  Para que um grupo seja formado são necessários ao menos 12 alunos interessados e um professor.  A língua portuguesa faz parte das línguas oferecidas e tem atualmente 14 grupos em três diferentes estados, com aproximadamente 200 alunos matriculados.

Para o governo austríaco, não apenas as crianças e os jovens contemplados se beneficiam dessas aulas, mas a sociedade como um todo. As aulas de língua de herança existem hoje como parte da formação intercultural, componente do plano educacional desde 1992 e ancorada no currículo de todas as escolas.

Formação intercultural mostra-se de suma importância no mundo globalizado e permite que os alunos percebam as diversas histórias de vida com naturalidade e o máximo de respeito. Possibilita também que os jovens compreendam que a própria biografia e história familiar moldam suas experiências, pensamentos e ações, tornando-os cidadãos cientes de seus próprios olhares e perspectivas.

Os alunos mostram-se aptos a perceber, analisar e reconhecer semelhanças e diferenças sociais, culturais e linguísticas. Desta forma, podem através de atitudes críticas opor-se a possíveis ações excludentes e discriminatórias.

Grande parte dos benefícios colhidos através do bom conhecimento da língua de herança é diretamente proporcional ao nível de proficiência do jovem na língua. O ideal é que, como nas demais disciplinas, as aulas acompanhem os alunos em todos os anos escolares e se apresentem em atividades dinâmicas e interessantes, com o aluno no centro da aprendizagem. A nota no boletim escolar não deve ser o principal objetivo. Devido à heterogeneidade dos alunos, podemos pensar em exames de proficiência como medida opcional em diferentes níveis de acordo com conhecimentos prévios, tempo de dedicação e desejo pessoal.  De qualquer forma, é importante jamais deixar de lado todas as questões de afeto e cultura envolvidas na aprendizagem dessa língua.

Para saber mais:

ÁUSTRIA: Ministério da Educação, Ciência e Pesquisa. Plurilinguismo, aulas de língua de herança e educação multicutural: https://www.bmbwf.gv.at/Themen/schule/schulpraxis/ba/sprabi/msmuib.html

RINGHOFER, D. F. D.; BOLACIO FILHO, E. S. Língua de herança, adolescência e avaliação. Revista da ABRALIN, v. 19, n. 3, p. 936-949, 23 dez. 2020