“Eu”, “nós” ou nenhum destes: qual pode ser usado no momento de escrever?

Quais pessoas do discurso usar num texto? Razões por trás das escolhas.

Dirceu Cleber Conde · Dirceu Cleber Conde é professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos e coordenador do grupo de pesquisa GeSER - Grupo de Pesquisa em Semântica, Sintaxe e Pragmática Formais da UFSCar.

Vocês já devem ter ouvido de seus professores de português, de redação ou de gramática que em textos formais como redações de vestibular, artigos científicos, certos documentos formais entre outros, não se deve utilizar a primeira pessoa do singular, ou seja, as formas relacionadas ao ‘eu’, como “Eu desenvolvi uma pesquisa baseada em (…)”. E, portanto, deve-se dar preferência às formas impessoais por meio do pronome ‘se’, como “Desenvolveu-se uma pesquisa baseada em (…)” ou então formas da primeira pessoa do plural, como “Nós desenvolvemos uma pesquisa baseada em (…)”.

Esse tipo de orientação nos soa como uma “verdade” inabalável e, portanto, parece muito correto, e nem sequer questionável. No entanto, a compreensão cientifica nos leva a outra visão desse fenômeno. As pesquisas nessa área demonstraram que quando alguém escreve ou fala, essa pessoa é a única com o poder, momentâneo, de escolher as palavras, a ordem da frase, a pontuação, o tom do texto, incluindo ser mais formal, menos formal etc. – são muitas as possibilidades de escolha que o usuário da língua tem. Na fala, podemos corrigir imediatamente o que é dito, mas na escrita, nosso texto pode passar por momentos de revisão e editoração. Para termos um ponto de partida, vamos observar a fala e depois a escrita:

  • (1)
  • Filho: Eu não quero ir!
  • Mãe: O que você disse, mocinho? Todos irão como uma família, unidos!
  • Filho: Tudo bem, mamãe, nós iremos.

Nesse pequeno trecho, diante da negativa da mãe, o filho reformula sua fala passando de ‘eu’ para ‘nós’, e essa mudança é bem significativa no pequeno diálogo. Qualquer falante pode identificar que o filho usa um ‘nós’ que inclui, pelo contexto de referência, um grupo familiar do qual ele também é membro. Há vários efeitos que podemos verificar da passagem do ‘eu’ para o ‘nós’ aqui: o filho quis marcar seu posicionamento subjetivo e recalcitrante, no entanto, diante da reprimenda da mãe que não usa o ‘eu’ nem ‘nós’, o filho se dissolve na primeira pessoa do plural, o que parece ser um movimento estratégico. Essa cena ilustra o funcionamento da fala, mas também algo que pode ser percebido no texto escrito:

O exemplo seguinte não é tão diferente do que acontece na oralidade: o autor marca a fala citada pela terceira pessoa, usa a primeira do singular e usa a primeira do plural:

  • (2)
  • Lawfare e a destruição da política
  • (…)
  •  Mas o que é lawfare? Uma boa resposta pode ser encontrada no livro “Lawfare: uma introdução” (…)
  • Como definem os autores lawfare é “o uso estratégico do direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo” (p. 26).
  • Destaco aqui o uso de “inimigo” e não “adversário” ou “oponente”. Inimigo porque o lawfare pressupõe um ambiente de guerra, em que o diálogo, a conciliação e a diplomacia são impossíveis.
  • Já dentre as inúmeras táticas de lawfare que se ligam às dimensões estratégicas, podemos destacar a violação de competência, a proposição de ações em diferentes localidades para confundir ou estressar o litigante, o uso abusivo de prisões preventivas, o vazamento seletivo de informações para contaminar o ambiente social, o excesso de (…)

ALMEIDA, S. Lawfare e a destruição da política. Folha de São Paulo, 18 fev. 2022.

O fato mais interessante dessa “astúcia enunciativa” é que a pessoa única que se pronuncia, que segura a caneta ou que digita no teclado não é tão monopessoal assim! Ao mesmo tempo em que tudo o que ela diz nasce da sua mente como se ela fosse a dona desse dizer, tudo já foi dito antes.

Como estamos sujeitos à contextos históricos e à pressão cultural de certas instâncias, esse ‘eu’ que costumamos chamar de “pessoa subjetiva” pode dizer algo usando outras formas que buscam representar distanciamento do tema/objeto de que está tratando e isso gera um efeito de imparcialidade.

Vamos tentar entender: então quer dizer que não existem as três pessoas da gramática? Na verdade, elas existem, mas não são bem compreendidas e explicadas. Aprendemos que existem três pessoas e seus respectivos plurais:

SingularPlural
1ª pessoaeunós
2ª pessoatu/vocêvocês
3ª pessoaele, elaeles, elas

Observemos um fato curioso: quando falante e ouvinte estão conversando, temos apenas um ‘eu’ que se dirige a um ‘tu/você’, não temos uma terceira pessoa que está no circuito comunicativo. A suposta terceira pessoa só é uma forma que a língua encontrou de demonstrar quem está na interação comunicativa e quem não está. Ou seja, quem é que fala e quem é assunto dessa fala:

  • (3)
  • Gosto de ver a Lua cheia, ela parece um grande queijo suíço!
  • Gosto de ver você, Lua cheia, você parece um grande queijo suíço!

O exemplo demonstra que uma coisa é falar sobre a Lua e outra coisa é falar com a Lua. Então, parece que podemos dar outro nome a essas relações, agora nos baseando em um linguista chamado Émile Benveniste:

Singular Plural
pessoa subjetivaeunós
pessoa não-subjetivotu/vocêvocês
não-pessoaele, elaeles, elas

Parece que na prática estamos mais preocupados em marcar quando queremos parecer a fonte do dizer, quando queremos diluir essa fonte em um coletivo ou quando queremos simplesmente dizer que essa fonte é bem impessoal, e, portanto, usar estratégias como esta – note que em (4b) não dá para saber quem ou o que fez o copo cair:

  • (4)
  • a. Desculpe, eu derrubei o copo.
  • b. O copo caiu.

Mas o que isso tem a ver com a escrita em contexto formal? Seria certo ou errado escrever um artigo científico usando a pessoa subjetiva ‘eu’?

Na verdade, como em várias outras instâncias de uso da língua, não há certo ou errado aqui, há apenas adequado ou inadequado ao contexto de produção. Um artigo científico não deixará de ser mais ou menos eficiente só porque o autor escreveu em primeira pessoa, mas pode ser que os leitores daquela área não gostem muito desse estilo por causa de seu “efeito” subjetivo. Um texto pode ser assinado por mais de uma pessoa, e então parece mais justo que são vários “eus”, e por isso é melhor usar o “nós”. Ou ainda, o autor deseja diluir-se em “nós” ou “alguéns”. E mesmo assim, podemos alternar em determinados momentos, como estou fazendo agora sem perder a coerência. Todos nós precisamos conhecer o “terreno que pisamos”, ou seja, de onde e para quem escrevemos de modo que possamos nos adaptar às condições ou ainda confrontarmos essas condições escrevendo textos, quem sabe, inusitados. Eis um poder e um direito momentâneo de quem vai “empunhar a pena” ou melhor, digitar no teclado. 

Referências

BENVENISTE, E. O aparelho formal da enunciação. In: Problemas de Lingüística Geral II. 3 ed. São Paulo: Pontes, 1989.

CONDE, C. A alternância da referência do sujeito-enunciador como expressão da identidade e seus efeitos de sentido. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2008.

FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ed. Ática, 1996.

INDURSKY, F. A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas, SP, Brasil: Editora da Unicamp, 1997.

SARAIVA, E. S. et al. Por que nem sempre fica claro quem é o responsável pela ação? In Roseta. 2021. <https://www.roseta.org.br/2021/10/13/por-que-nem-sempre-fica-claro-quem-e-o-responsavel-pela-acao/>