A fala pública tem sexo?

A fala pública e a discriminação das mulheres.

Amanda Braga, Amarildo Rodrigues e Carlos Piovezani · Amanda Braga é professora de Análise do discurso da UFPB e coordenadora do Observatório do discurso. Estuda discriminações da fala feminina e outros discursos do preconceito. É autora de História da beleza negra no Brasil (EdUFSCar 2015) e organizadora de Por uma microfísica das resistências (Pontes 2020). Amarildo Rodrigues está terminando o curso de Bacharelado em Linguística na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e faz uma pesquisa com bolsa da FAPESP (Processo 2020/02713-8) sobre a fala pública em manuais de Reinaldo Polito. Carlos Piovezani é professor de Análise do discurso da UFSCar e pesquisador do CNPq. Estuda discursos da mídia e da política e a história da fala pública. É autor de A linguagem fascista (Hedra 2020) e A voz do povo: uma longa história de discriminações (Vozes 2020).

A fala pública é constituída por sexismos e a oratória é um campo que tende a discriminar as mulheres.

Há diversos obstáculos históricos que dificultam o acesso feminino ao espaço público e várias circunstâncias em que as falas de mulheres são depreciadas e interditadas. Entre esses obstáculos, destacamos aqui a existência de uma sexuação das práticas de fala pública, que consiste na distribuição desigual de suas possibilidades e de seu exercício entre os universos masculino e feminino.

Essa sexuação da fala pública distribui desigualmente seus poderes e alcances, ao contrapor a atividade viril do orador que fala e vence o tumulto dos auditórios e a passividade feminina sob a forma do silêncio. Nela também se opõem a virtude masculina da coragem exigida pelas falas francas e o vício feminino da bajulação e do eufemismo.

Muitos compêndios de retórica e manuais de fala pública reproduzem esses preconceitos em relação a características oratórias consideradas femininas e menosprezam a fala das mulheres. Entre outros antigos, Cícero afirma que “o homem será eloquente” se conseguir “dar provas do que diz, ser agradável e emocionar seus ouvintes”. E acrescenta que é fundamental ser “veemente para comover seu auditório, porque nisso reside toda a potência do orador” (O orador, cap. XXI, 69). Roma era uma sociedade patriarcal. O próprio Cícero e outros pensadores do direito romano afirmavam que as mulheres eram inferiores aos homens e, por isso, deveriam ser tuteladas por seus pais, maridos ou irmãos.

Não há lugar para a fala feminina na retórica e na oratória dos antigos. Mas também quase não há espaço para ela entre os modernos. Os preconceitos contra as intervenções públicas das mulheres são tamanhos que eles ultrapassam fronteiras do tempo e do espaço, das instituições e das posições ideológicas.

Da Roma antiga à França moderna, há discursos que continuam a ignorar a fala das mulheres e a depreciar marcas entendidas como femininas em pronunciamentos masculinos. É isso que ocorre nesta passagem de um dos mais conhecidos compêndios franceses de retórica do século XVII:

Uma voz forte e sonora tem a energia seminal, a elegância masculina e a firmeza da virilidade. Homens devem ter voz masculina para falar em público. O maior pecado que pode acontecer com os oradores é que eles sejam delicados, que seu corpo seja efeminado e que sua voz se assemelhe à das mulheres e das aves. (Cressoles, 1620, cap. V, p. 472)

Apesar das transformações históricas e comportamentais que ocorreram ao longo do século XX, motivadas, principalmente, pelas lutas feministas, os preconceitos contra a fala pública feminina estão ainda bastante presentes em nossos dias. No Brasil contemporâneo, os discursos que discriminam a fala em público das mulheres se materializam em diferentes esferas sociais, em distintas instituições e em vários campos do conhecimento.

Com o objetivo de mais bem compreender esses discursos no campo da oratória, desenvolvemos pesquisas que analisam compêndios de retórica e manuais de fala pública brasileiros. Alguns desses manuais são de autoria de Reinaldo Polito. Entre eles, mencionamos os seguintes: Como falar corretamente e sem inibições (1986), Assim é que se fala (1999), Fale muito melhor (2003), Vença o medo de falar em público (2005) e Seja um ótimo orador (2005). Escolhemos esses manuais porque eles lideram há bastante tempo o ranking brasileiro das obras mais vendidas nesse segmento.

Entre outros resultados obtidos com esses nossos estudos, destacamos aqui a identificação de uma concepção sexista e sexuada das práticas de fala pública, sob a forma de estereótipos sobre a figura feminina e de crenças de uma ideologia sexista, que são encobertos pelos efeitos de legitimidade e de autoridade construídos por seu autor.

Nas passagens em que Polito considera manifestamente o público feminino, suas recomendações são dirigidas aos homens, enquanto as mulheres são reduzidas a tema dessas suas indicações e a possível auditório do orador masculino. Numa palavra, as mulheres ali não são destinatárias dessas obras nem tampouco são potenciais oradoras.

Segundo Polito, os que desejam ser bons oradores devem evitar “atitudes efeminadas”, porque “contorções do corpo, exclamações exageradas, emprego constante de palavras no diminutivo etc. irritam o auditório e o colocam contra o comunicador”. A oposição entre os universos masculino e feminino se baseia numa separação estanque entre a razão dos homens e a emoção das mulheres. Vejamos alguns fragmentos em que Polito fala das mulheres, mas não para as mulheres nem tampouco para instruí-las e incentivá-las a falar:

(…) o tratamento que se deve dar a um auditório feminino não é o mesmo que se deve dar a um auditório masculino. A sensibilidade feminina é sempre mais aflorada, o gosto da mulher pela poesia, pelos tópicos românticos, pelos enfoques emocionais é mais evidenciado. O estilo da composição, o adorno do vocábulo, a musicalidade da voz encontram maior receptividade no público feminino. Esses aspectos dos auditórios com a presença da mulher são perenes e dificilmente serão modificados. (Polito, 1986, p. 94)

Estudos recentes mostram que o homem se deixa envolver mais por exposições que oferecem provas com números e dados lógicos e concatenados, enquanto as mulheres, pelo fato de possuírem a sensibilidade e a intuição mais desenvolvidas, podem aceitar argumentos independentemente das provas e da maneira como são ordenados. (Polito, 1999, p. 51)

Polito reproduz uma série de estereótipos sobre a mulher, não lhe dirige absolutamente a palavra e constrói para si uma imagem de especialista bem fundamentado, porque o faz com base em “estudos recentes” e em “fatos”. Efetivamente, nem os primeiros são referenciados nem os segundos têm qualquer fundamento, além das próprias crenças da ideologia sexista.

A identificação das diferenças entre os sexos se tornou uma forma primária de relações de poder. Porque o discurso é objeto de poder, o sexismo e sua ideia fundamental de que o sexo masculino é superior ao feminino tentam inibir e calar as mulheres, principalmente, no espaço público.

Referências e sugestões de leitura:

BRAGA, Amanda; PIOVEZANI, Carlos. Discursos sobre a fala feminina no Brasil contemporâneo. Revista da ABRALIN, v. 19, n. 1, 2020.

CICERO. De l’orateur. Paris, Les Belles Lettres, 2002.

COURTINE, Jean-Jacques; PIOVEZANI, Carlos. (Org.). História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso. Petrópolis: Vozes, 2015.

CRESSOLES, Louis de. Vacationes autumnales, siue de perfecta oratoris actione et pronuntiationne. Paris, Cramoisy, 1620.

DEL PRIORE, Mary. Sobreviventes e guerreiras: uma breve história da mulher no Brasil de 1500 a 2000. São Paulo, Planeta, 2020.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, Loyola, 2001.

PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo, Editora UNESP, 2003.

POLITO, Reinaldo. Como falar corretamente e sem inibições. São José dos Campos, Editora Saraiva, 1986.

POLITO, Reinaldo. Assim é que se fala. São José dos Campos, Editora Benvirá, 1999.