Caxa, pexe, cenora: por que os ditongos são monotongados?
A depender do ditongo, a razão para que a monotongação aconteça é diferente.
Nas aulas de português da educação básica, aprendemos que ditongo é o encontro de uma vogal (a, e, i, o, u) e de uma semivogal (i, u) numa mesma sílaba (CEGALLA, 2000; ALMEIDA, 2009; BECHARA, 2009; CUNHA; CINTRA, 2017). Assim, palavras como caixa, peixe, louco, ciência, série, árduo são constituídas por combinações de vogal e semivogal tidas como ditongo. Durante as aulas, realizamos atividades em que temos de localizar esses encontros vocálicos em listas de palavras e classificá-los em decrescente, quando a vogal antecede a semivogal, como em peixe; ou crescente, quando a vogal sucede a semivogal, como em ciência.
Essa definição de ditongo encontrada em gramáticas está relacionada especificamente com a escrita, sem correspondência com os aspectos sonoros da língua. Só reconhecemos um ditongo em palavras como peixe, caixa, cenoura devido à leitura dessas palavras e à instrução explícita da escola de que ali consta um ditongo decrescente oral (FREITAG, 2020).
Apenas com base nas experiências com a língua falada é difícil identificar ditongos nesses itens, tendo em vista que para nós, falantes do português brasileiro, palavras como peixe podem ser realizadas como pexe; caixa, como caxa; cenoura, como cenora.
A semivogal do ditongo é omitida na fala, resultado de um processo fonético-fonológico que chamamos de monotongação, em que um ditongo decrescente oral é reduzido a um monotongo, ou seja, apenas a vogal é realizada.
Apesar de gramáticos recomendarem a realização da semivogal dos ditongos decrescentes orais em situações formais (CEGALLA, 2000; BECHARA, 2009), o fenômeno de monotongação é produtivo no português brasileiro, e nós, falantes, nem percebemos que apagamos a semivogal (afinal, raramente as pessoas são corrigidas por fazer isso, e aposto que você só percebeu isso agora, lendo este texto).
O processo de monotongação ocorre, inclusive, em situações de maior monitoramento, como na leitura em voz alta (HORA; AQUINO, 2012; MACHADO, 2018), e interfere na escrita de crianças que estão em processo de alfabetização (SIMIONI; RODRIGUES, 2014; MOURA; SILVA JR., 2020; SILVA; SOUZA, 2020), configurando um desvio ortográfico (Figura 1).
Mas não é qualquer ditongo decrescente oral que pode ser monotongado.
Existem contextos em que ditongos são sempre preservados, em que a monotongação não ocorre, e outros nos quais são mais suscetíveis ao fenômeno. A semivogal pode ser omitida na fala, por exemplo, em palavras como pexe, mas tende a ser preservada em palavras como peito e andei, ambas com o ditongo ei.
Muitos estudiosos da linguagem já se dedicaram à investigação das motivações desse processo em falantes de diversas regiões do Brasil. A partir de uma revisão sistemática da literatura (SOUZA, 2022b), percebemos que apenas quatro ditongos decrescentes orais podem ser monotongados no português brasileiro: ou, ei, ai e oi. No entanto, o fenômeno não acontece do mesmo modo em todos eles. Existem ditongos que são mais monotongáveis do que outros (Figura 2), e o processo ocorre em cada um deles por motivos distintos.
A monotongação do ditongo ou é vista como uma mudança já consolidada no português brasileiro. Isso significa dizer que nós sempre apagamos a semivogal desse ditongo na fala. Observe como pronunciamos palavras como touro, andou, outro. Percebeu? A semivogal é sempre omitida: toro, andô, otro. Gramáticos, inclusive, já reconhecem a monotongação desse ditongo como norma (CUNHA; CINTRA, 2017).
A monotongação do ditongo ei não é tão simples quanto a do ditongo anterior. Nem todo ei é monotongado. Apagamos a semivogal desse ditongo ao falarmos palavras como cadera, bejo, pexe, mas não ao pronunciarmos palavras como falei, teima. A monotongação desse ditongo está relacionada principalmente ao som que vem depois dele. Quando o ditongo ei é sucedido pelos sons representados pelas letras r, j e x (em que há proximidade articulatória com a semivogal do ditongo), a monotongação ocorre: bandera, fejão, fexe. Nos demais casos, as chances de apagarmos a semivogal desse ditongo é muito pequena, principalmente porque implica em mudança de sentido: falei ~ fale, teima ~ tema.
O ditongo ai é ainda mais restrito. A monotongação desse ditongo só ocorre quando ele é sucedido por sons representados pela letra x (também devido à proximidade articulatória com a semivogal do ditongo): caxa, faxa, paxão. Observe que em outros casos sempre realizamos a semivogal: pai, cai, vai. A monotongação desse ditongo também ocorre com frequência em falantes que realizam palavras como mais com o que chamamos informalmente de chiado, como falantes florianopolitanos (HAUPT, 2011).
O mesmo ocorre com o ditongo oi. Nesse ditongo, o apagamento da semivogal ocorre em falantes que realizam o s final de palavras como dois, depois, pois com chiado (HAUPT, 2011). Nos demais casos, a semivogal tende a ser preservada.
Apesar de ser fortemente condicionada por regularidades internas à estrutura linguística, a monotongação é sensível ao nível de escolarização dos falantes. Os estudos apontam que quanto maior o nível de escolarização dos falantes, menores são os percentuais de monotongação (ARAUJO, 1999; LOPES, 2002), resultantes do contato com a norma escrita (SCHWINDT et al., 2007), em que o ditongo é preservado.
Portanto, respondendo à questão que intitula este texto: as motivações que levam à omissão da semivogal em ditongos decrescentes orais (ou, ei, ai e oi) no português brasileiro são distintas para cada um deles, mas relacionam-se principalmente com a proximidade articulatória da semivogal com os sons que sucedem o ditongo, e com o nível de escolarização do falante.
Imagine, agora, o desafio de ensinar a escrever um ditongo que não é realizado na fala em determinados contextos? É por isso – mas não apenas – que estudos sobre a fala são tão importantes: entender que existem motivações, linguísticas e sociais, para a omissão da semivogal de ditongos na fala, permite ao professor reconhecer que o apagamento desse segmento na escrita não é um mero desvio casual, mas é influenciado por um traço variável na fala. Assim, o professor pode tomar decisões mais técnicas e informadas em seu planejamento e prática pedagógica.
Referências
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática metódica da língua portuguesa. 46. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
ARAUJO, Maria Francisca Ribeiro de. A alternância de [ej] ~ [e] no português falado na cidade de Caxias, MA. 134 f. 1999. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 1999. Disponível em: http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/CAMP_ffe16af0f7b00a35d1b0a5fdebff58a4. Acesso em: 26 abr. 2021.
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
CEGALLA, Domingo Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa. 43. ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 2000.
CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 7. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2017.
FREITAG, Raquel Meister Ko. A sociolinguística da leitura. Letrônica, Porto Alegre, v. 13, n. 4, p. 1-13, 2020. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-4301.2020.4.37508. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/letronica/article/view/37508. Acesso em: 24 ago. 2021.
HAUPT, Carine. O fenômeno da monotongação nos ditongos [aɪ̯, eɪ̯, oɪ̯, uɪ̯] na fala dos florianopolitanos: uma abordagem a partir da fonologia de uso e da teoria dos exemplares. 212 f. 2011. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Linguística, Florianópolis, SC, 2011. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/95789. Acesso em 21 abr. 2021.
HORA, Dermeval da; AQUINO, Maria de Fátima S. Da fala para a leitura: análise variacionista. ALFA: Revista de Linguística, v. 56, n. 3, 2012. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/4986/0#:~:text=Os%20dados%20analisados%20apontam%20uma,daquilo%20que%20a%20escola%20preconiza. Acesso em: 02 set. 2020.
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SOUZA, Victor Renê Andrade. Monotongação de ditongos decrescentes orais no português brasileiro: uma revisão sistemática da literatura. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 30, n. 3, p. 1143-1184, 2022b.