O que é, afinal, um prefixo?

Apesar de fáceis de identificar a natureza íntima desses elementos é assunto que tem rendido muita discussão entre os linguistas.

João Henrique Lara Ganança · João Henrique Lara Ganança, é doutorando em Língua Portuguesa pela USP e estuda como e por que são criadas novas palavras em nossa língua

Anormal. Pré-vestibular. Reanalisar. Você já parou para pensar o que essas palavras têm em comum? Todas elas são formadas por elementos, colocados sempre em seu início, que lhe dão um acréscimo de significado. Veja: anormal significa algo ou alguém que não é normal; pré-vestibular é aquele curso preparatório que antecede às provas de vestibular; reanalisar quer dizer analisar novamente. Esses elementos chamam-se prefixos. Mas o que é, afinal, um prefixo?

Apesar de fáceis de identificar, pois os prefixos são, como peças de lego no jogo da língua, facilmente destacáveis, a natureza íntima desses elementos é assunto que tem rendido muita discussão entre os linguistas. Isso ocorre porque, entre o que a tradição gramatical denomina prefixos, há aqueles que sempre aparecem unidos a palavras (numa linguagem técnica, dizemos afixados), como in (indiscreto, indisposto), des (desfazer, desentender-se), re (reaparecer, resignificar), entre outros; e há aqueles que podem ser empregados tanto como palavras nas frases e textos quanto como formas afixadas a outras palavras. Vejamos, por exemplo, os casos de contra e sobre: “eu sou contra o aumento de impostos” (palavra) e “a Síria sofreu um contra-ataque” (forma afixada); pode-se ainda dizer “o livro está sobre a mesa” (palavra) e “fiz um esforço sobre-humano para estar aqui no horário” (forma afixada).

Apesar de fáceis de identificar, a natureza íntima dos prefixos é assunto que têm rendido muita discussão entre os linguistas.

Se comparados aos sufixos, que são aqueles elementos que se encontram afixados ao final de algumas palavras, como jornalista (jornal + ista), os prefixos são muito mais semelhantes às palavras (em termos especializados, dizemos que são muito mais lexicais). Não se registram, normalmente, na língua, sufixos empregados como formas que podem ser usadas sozinhas, sem acompanhar uma palavra. É o que os linguistas chamam de “formas livres”. Uma das raras exceções é o sufixo ismo, em contextos muitíssimo restritos, normalmente carregados de ironia e sarcasmo, como em: “a sociedade já sofreu a influê”ncia do Cristianismo, do Feudalismo, do Iluminismo, do Capitalismo, do Socialismo e de diversos outros ismos que fizeram a cabeça de gerações inteiras”.

Além disso, percebe-se que os prefixos podem materializar, na língua, significados próximos aos de palavras (significados ditos lexicais), como os de adjetivos (“ocorreu ontem um megaevento” = evento grande) e de advérbios (“o metrô estava hiperlotado” = muito lotado). Veja que entre os sufixos, por exemplo, isso não ocorre regularmente. Em baleava (bala + ava), o sufixo não tem significado de palavra, pois indica apenas que o verbo balear está conjugado em uma das formas do tempo passado.

Assim como os sufixos, disseram esses linguistas, os prefixos também produzem palavras “em série”, como se a língua fosse uma fábrica de palavras, ou seja, os prefixos e os sufixos estão sempre à disposição dos falantes para novas criações.

Tudo isso levou alguns linguistas, como Joaquim Mattoso Câmara Jr, em seu famoso livro de 1975, História e Estrutura da Língua Portuguesa, a considerar os prefixos como tipos de palavra e a prefixação, nome técnico para a união entre prefixos e outras palavras, como um dos tipos de composição, processo de formação lexical no qual duas ou mais palavras se associam para formar outra (beija-flor, guarda-roupa etc.). Para ele, grosso modo, já que os prefixos do português correspondem, normalmente, a preposições (que é uma das classes de palavras consideradas pela tradição gramatical) do latim ou mesmo de nossa língua, nada mais acertado que entender esses elementos também como palavras.

Essa tendência, aliás, era bastante comum nas gramáticas até meados dos anos 60. A exceção encontrava-se, na época, em Manuel Said Ali, importante gramático brasileiro, em cuja obra Gramática Histórica, de 1964, encontramos a ideia de que os prefixos não são, pois, palavras, mas sim parentes próximos dos sufixos, justamente por existirem, entre eles, como já mencionado acima, aqueles que são apenas partículas presas, chamadas morfemas, que necessariamente se afixam, isto é, associam-se a outras palavras, sem serem empregadas como formas livres (in-, a-, des-, re- etc.). Said Ali não considera, como Mattoso Câmara o fizera, o paralelo entre prefixos e preposições no latim como justificativa para classificar os primeiros como tipos de palavras. Esse ponto de vista é, hoje, predominante nas gramáticas da língua portuguesa que todos nós estudamos nas escolas.

Já a partir do final dos anos 70 e início dos 80, um grupo de linguistas especialistas nas palavras (chamados lexicólogos), orientados por uma vertente da Linguística denominada Morfologia Lexical, reanalisaram a situação dos prefixos e perceberam que, se alguns eram mais livres e independentes que outros, todos eles tinham em comum o fato de ocuparem, sem exceção, a mesma posição inicial e agregarem sempre, à palavra com que se uniram, significados novos. Assim como os sufixos, disseram esses linguistas, os prefixos também produzem palavras “em série”, como se a língua fosse uma fábrica de palavras, ou seja, os prefixos e os sufixos estão sempre à disposição dos falantes para novas criações dessa intrigante fábrica. Isso fez deles não apenas parentes próximos, mas gêmeos dos sufixos, e eles foram, em definitivo, retirados do rol das palavras. A prefixação passou a ser entendida, partir de então, como processo de natureza derivacional, em que a uma palavra une-se um morfema. Essa postura é adotada por importantes lexicólogos brasileiros, como Margarida Basilio, em Teoria Lexical (1987), Antônio José Sandmann, em Morfologia Lexical (1992), Ieda Maria Alves, em Neologismo. Criação Lexical (1990), entre outros.

[A] grande maioria dos prefixos está, literalmente, no meio da linha imaginária do continuum de prefixidade, reunindo em si tanto características de morfema quanto de palavra e isso acaba por responder à pergunta-título de nosso texto, pois, iluminados pelo modelo de análise acima explicitado, podemos afirmar que um prefixo é, afinal, um elemento híbrido entre o morfema e a palavra.

Apesar da tendência contemporânea da Linguística, em especial da Morfologia Lexical, em considerar a prefixação como processo derivacional, a diversidade de comportamentos no âmbito desses elementos continua a ser tema de debates e (re)considerações constantes.

Em Morfologia Portuguesa (1986), José Lemos Monteiro, por exemplo, advoga que a essência do prefixo é ser forma presa, não sendo, portanto, prefixais elementos que também podem ser lexicais, ou seja, palavras, como contra-, sobre- e sem-. Luiz Carlos Schwindt, no artigo O prefixo no português brasileiro: análise prosódica e lexical (2001), fruto de sua tese de doutorado, evidencia que a diversidade dos prefixos pode ser verificada também em nível fonológico (isto é, dos sons e entonações). Atesta ele que há prefixos que, ao se unirem a palavras, mantém sua força sonora e a palavra resultante apresenta duas sílabas tônicas, isto é, pronunciadas com mais ênfase: pós-modernismo. Por outro lado, em infeliz, por exemplo, percebe-se que o prefixo é pronunciado sem ênfase e a palavra resultante apresenta apenas uma sílaba tônica. Diz-nos, portanto, Schwindt que prefixos como pós, pré, super etc. são composicionais e, fonologicamente, pós-modernismo, pré-natal, super-herói são palavras compostas, não derivadas; ao contrário, prefixos como in, re, a, des etc. são por ele considerados legítimos e infeliz, reapresentar, amoral, desequilibrar são, de fato, palavras derivadas.

Novos estudos, entre os quais se insere o trabalho Um estudo da prefixação em unidades lexicais neológicas coletadas de blogs da internet, dissertação de mestrado defendida em 2017 na Universidade de São Paulo, têm se voltado novamente a estudar a natureza íntima dos prefixos. Nesse trabalho em específico, partindo do princípio mais aceito atualmente na Linguística de que o prefixo não é palavra, mas morfema, propõe-se a ideia de um “prefixo-modelo”, também chamado de “prefixo prototípico”, que reuniria em si, idealmente, as características de um morfema: cria palavras em série, é empregado sempre afixado a outras palavras, não é pronunciado com entonação na cadeia da fala, entre outras. Em seguida, compara-se o comportamento dos prefixos reais do português com esse “prefixo prototípico”, a fim de se criar um continuum de prefixidade, ou seja, uma linha imaginária na qual em uma das pontas encontra-se o prefixo-modelo e na outra, as palavras. Quanto mais características do prefixo-modelo apresentar o prefixo real, mais próximo do protótipo ele é colocado na linha.

Esse modelo de análise tem como principal vantagem, em nosso entender, evidenciar justamente a diversidade inerente aos prefixos. Sem prejuízos de classificação, é possível entender, ambos como prefixais, os elementos in e sobre. O que os diferenciaria, portanto, não é sua natureza íntima, mas o seu maior ou menor distanciamento em relação a esse modelo ou protótipo de prefixo.

Na dissertação acima referida, descobriu-se que a grande maioria dos prefixos está, literalmente, no meio da linha imaginária do continuum de prefixidade, reunindo em si tanto características de morfema quanto de palavra e isso acaba por responder à pergunta-título de nosso texto, pois, iluminados pelo modelo de análise acima explicitado, podemos afirmar que um prefixo é, afinal, um elemento híbrido entre o morfema e a palavra. Ou seja, o prefixo é…. um prefixo: nem morfema nem palavra.

Por tudo o que foi dito até aqui, julgamos simplesmente impossível tentar alocar os prefixos, de uma vez por todas, em um único grupo, pois sempre haverá exceções. O melhor e mais sábio é justamente olhá-los naquilo que eles têm de mais atraente e que acaba por ser, afinal, sua marca maior: a diversidade de comportamentos e de significados.