O gênero de COVID

Afinal, é "o covid" ou "a covid"? Talvez essa não seja a pergunta mais interessante.

Eduardo Henrik Aubert e Marcelo Módolo · Eduardo Henrik Aubert é doutor em História (EHESS-Paris) e Direito (FD-USP) e doutorando em Letras Clássicas (FFLCH-USP); Marcelo Módolo é professor da USP. É doutor em Filologia e Língua Portuguesa e sua pesquisa trata de como as palavras se combinam, a sintaxe.

A pandemia do coronavírus, além de muitas mazelas, trouxe aos falantes do português uma série de novas palavras e de novas estruturas que, do ponto de vista do linguista, interessam sobretudo porque dão a ver, como que desfilando sob nossos olhos, o próprio funcionamento da língua.

Tomemos por exemplo o fato aparentemente banal da variação de gênero do item lexical COVID-19. Em duas reportagens do jornal O Estado de São Paulo, publicadas em 09/06/2020, veem-se tratamentos distintos: “O ministro da Saúde… criticou… a forma de divulgação de boletins diários de infectados e de mortos pela covid-19…”; “com o cenário imposto pela pandemia do Covid-19, o Colégio São Luís reorganizou as atividades…” Não estranha, assim, que muita vez se prefira abandonar o artigo e não adjetivar, para se desvencilhar do problema do gênero. No mesmo dia e no mesmo jornal: “Em 2020, com a pandemia de covid-19…”

Se diferentes especialistas podem, de forma legítima, questionar qual a forma correta das palavras, o linguista vê aqui um fenômeno muito interessante: por que as pessoas atribuiriam gêneros distintos a esse item lexical? Mera indecisão, fruto de um amplíssimo desconhecimento? Parece-nos que esse juízo depreciativo impede a percepção das lógicas que subjazem à variação.

Veja-se que, em princípio, COVID-19 é uma sigla, em língua inglesa, que significa Corona Virus Disease 2019, aproveitando as primeiras duas letras das duas palavras iniciais e a primeira da última, a que se soma o “19” de 2019, ano em que a doença surgiu. Falamos em siglas todos os dias – a USP, a FAB, o PT, o PSDB, etc… –, e o gênero sempre acompanha o substantivo que é o núcleo da expressão. Nos nossos exemplos, a U[niversidade de] S[ão] P[aulo], o P[artido dos] T[rabalhadores], etc..

Se diferentes especialistas podem, de forma legítima, questionar qual a forma correta das palavras, o linguista vê aqui um fenômeno muito interessante: por que as pessoas atribuiriam gêneros distintos a esse item lexical? Mera indecisão, fruto de um amplíssimo desconhecimento? Parece-nos que esse juízo depreciativo impede a percepção das lógicas que subjazem à variação.

No caso das palavras em língua estrangeira, a praxe, em textos escritos na norma culta, é a de que a primeira ocorrência da sigla seja desdobrada entre parênteses e traduzida: “A COVID-19 (Corona Virus Disease 2019, isto é, “Doença do Coronavírus 2019”). O gênero, em português, passa então a ser o do núcleo do sintagma na tradução – os sintagmas lexicais são conjuntos de palavras, centradas em torno de um núcleo que determina as propriedades das demais palavras. Assim, quando falamos, por exemplo, “a NASA”, e não “o NASA”, estamos nos referindo ao núcleo do sintagma, Agency, em seu equivalente português: “Agência” [Aerospacial Norte-Americana]. Isso porque o núcleo “agência” determina, como cabeça da hierarquia, o gênero de palavras como os artigos (“a”) e adjetivos (“norte-americana”) que gravitam em torno dele.

Note que se trata de uma abordagem analítica, em que o gênero está acompanhando um elemento dentro de um conjunto de itens (o sintagma), que vem assim identificado e marcado em seu gênero, ou por meio de seu gênero, como elemento discreto.

No entanto, as siglas têm uma espécie de segunda vida, paralela ou posterior, porque em muitos casos, elas deixam de ser vistas como reunião de elementos discretos para ser entendidas como um todo lexical, isto é, como um vocábulo. A própria forma de composição das siglas busca construir sequências eufônicas, isto é, agradáveis ao ouvido e passíveis de ser pronunciadas com facilidade. É o próprio caso de COVID, que reteve as vogais entre as consoantes justamente para poder formar sílabas. Há até quem prefira falar em acrônimo nesses casos, reservando a denominação de sigla apenas àquelas sequências em que se pronunciam os nomes das letras (MP, PGR, etc.). E mesmo aqui os falantes vão interferindo: em uma sigla stricto sensu, como FFLCH (a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), o uso supriu as vogais para conferir condições de pronúncia corrida (“fê-fê-lé-chi”).

No entanto, as siglas têm uma espécie de segunda vida, paralela ou posterior, porque em muitos casos, elas deixam de ser vistas como reunião de elementos discretos para ser entendidas como um todo lexical, isto é, como um vocábulo.

A sigla mais importante nos Estados Unidos da América é POTUS (President of the United States, “Presidente dos Estados Unidos”), que brinca com o fato de que potus também é uma palavra latina, que significa bebida. Assim, o que eram originalmente siglas vão recebendo tratamentos próprios aos vocábulos, por exemplo flexionando em grau (“USPzinha do meu coração”). Uma simples busca no google produz resultados como “Qui ça, apanhar aquele covidzinho básico”, “vamo ve o que o covidzinho vai achar dessa macheza toda”. Note-se que são em geral comentários em redes sociais, em que impera um grau menor de formalidade, e os usuários da língua não se sentem premidos pelos ditames da norma culta. Interessante que, no universo alcançado pelo buscador google, reine o gênero masculino (183 resultados de “covidzinho”, contra apenas 9 de “covidzinha”).

Nessa outra lógica, como palavra em si mesma, e não sigla, covid (daí talvez o abandono das maiúsculas, signo da incorporação ao léxico) vai sendo tratada com um gênero que não é o analítico da Corona Virus Disease, mas segundo outra lógica, que muito provavelmente se apoia na outra invasão lexical pandêmica, isto é, coronavírus. Não se trata mais de um sintagma lexical complexo, com vários constituintes, mas de uma só palavra. Sem dúvida, a proximidade fônica propicia que covid seja visto como item equivalente, talvez como uma sorte de abreviação de coronavírus.

[A] nova palavra vem enredada em duas lógicas perfeitamente pujantes e produtivas na língua: a lógica da sigla, que é analítica, e a lógica do vocábulo, que é totalizante.

Não é, portanto, mera ignorância que faz com que o gênero de COVID (ou covid) varie: é o fato de que a nova palavra vem enredada em duas lógicas perfeitamente pujantes e produtivas na língua: a lógica da sigla, que é analítica, e a lógica do vocábulo, que é totalizante. A questão não é, portanto, de correção, mas de função desempenhada pelo produto que há pouco – infelizmente! – importamos.