“Eu não tenho sotaque!” – Será?

Acreditar que somente o outro tem sotaque pode gerar atitudes preconceituosas até mesmo entre pessoas que falam a mesma língua

Brenda Barreto · Brenda Barreto é mestra em Linguística. No momento, ela escreve sua tese de doutorado e estuda como os sons são aprendidos e produzidos por aprendizes brasileiros de línguas estrangeiras.

Quem não percebe que a produção oral de um estrangeiro falando português ou de um brasileiro que mora em outro estado é diferente e parece ter sons peculiares, cujas características nos chamam atenção? Essas características estão ligadas ao que leigos e linguistas chamam de sotaque. Mas eu não tenho sotaque! Será que todo falante tem sotaque?

Certo dia, um grupo de alunos de engenharia conversava sobre as dificuldades que os brasileiros têm ao aprender inglês. Segundo eles, o maior obstáculo seria a pronúncia das palavras. “O carioca é aquele que mais tem dificuldade”, opinou um deles. O outro completou: “Sim, os carioca pronunciam tudo errado. Eles falam um ‘s’ estranho, chiado. Nós, paulistas, aprendemos inglês muito mais rápido porque pronunciamos o ‘s’ corretamente, assim como os falantes de inglês.”

Num primeiro momento, um ouvido inocente não perceberia, mas estamos falando aqui de sotaques. O que leva as pessoas a acreditarem que alguns grupos falam mais certo que outros e produzem os sons da forma correta é a convicção de que somente o outro tem sotaque.

Mas, o que é sotaque?

Segundo o linguista brasileiro Mattoso Câmara Jr., sotaque é o conjunto de sons que caracterizam a fala de pessoas que vivem numa região ou de pessoas falando em uma língua estrangeira. Além dos sons, fatores como a melodia também individualiza a maneira de falar de pessoas que possuem diferentes sotaques. Podemos dizer, então, que, no caso daqueles que falam a mesma língua, todas as pessoas têm sotaques e eles são específicos das regiões onde vivem. Por que, então, acreditamos que nós e aqueles que vivem em nossa comunidade linguística não temos sotaque? Isso ocorre porque, na verdade, não percebemos os traços fonológicos, ou seja, as características dos sons que são produzidos por aqueles que nos cercam por serem naturais pra nós, pois são os mesmos que nós produzimos. Quando nos deparamos com alguém que produz o ‘s’ ou o ‘r’, por exemplo, de forma diferente da nossa, reagimos com estranhamento por esta pronúncia ser distinta da nossa própria e atribuímos esse fenômeno à presença de sotaque. Mas, na verdade, nós também temos sotaque. Apenas não o percebemos!

Sotaque é o conjunto de sons que caracterizam a fala de pessoas que vivem numa região ou de pessoas falando em uma língua estrangeira

Acreditar  que somente o outro tem sotaque pode gerar atitudes preconceituosas até mesmo entre pessoas que falam a mesma língua, mas dominam dialetos diferentes. Muita piada se faz com as vogais abertas, tais como o som da letra ‘o’ em ‘hospital’ ou ‘e’ em ‘mesada’, características do sotaque nordestino ou sobre o ‘r’ chamado de “caipira” em ‘porta’. Isso se dá porque em todos os países, embora exista grande variação de sotaques dentro das línguas, sempre uma variedade é eleita como a variedade de prestígio e chamada de variedade padrão, aquela que, diz-se, carrega um sotaque “neutro”, definida pelo grupo de mais prestígio na sociedade, principalmente aqueles detentores dos meios de comunicação de massa. Isso faz com que muitas formas de falar sejam tratadas como engraçadas, marginais e, até mesmo, erradas. Além disso, a reprovação pode recair sobre a forma de falar da própria pessoa que traça o julgamento quando esta avalia sua maneira de se expressar como pior ou inadequada.

Acreditar que somente o outro tem sotaque pode gerar atitudes preconceituosas até mesmo entre pessoas que falam a mesma língua, mas dominam dialetos diferentes.

Estrangeiros que falam uma língua local com sotaque não-nativo também podem sofrer algum tipo de avaliação negativa dos falantes daquela região. Há alguns anos, um estudo conduzido por Shiri Lev-Ari e Boaz Keysa, então pesquisadores do Departamento de Psicologia da Universidade de Chicago, revelou que o sotaque de estrangeiros falando inglês influenciou na aceitação de frases contendo informações de conhecimento geral, como por exemplo, “A formiga nunca dorme” ou “A girafa consegue sobreviver sem água por mais tempo que o camelo.” Através de experimentos, eles mostraram que, quando a frase era lida por um falante com sotaque estrangeiro, falantes nativos de inglês americano classificavam as informações como falsas, enquanto o mesmo tipo de informações fornecidas por falantes nativos ganhavam o status de verdadeiras. Os pesquisadores atribuíram o resultado à dificuldade que os nativos têm de processar sua língua quando produzida por alguém que tenha sotaque não-nativo.

O sotaque carrega traços da identidade das pessoas, traços que envolvem fatores afetivos e sensação de pertencimento a um determinado grupo.

O sotaque estrangeiro se deve, sobretudo, à influência dos sons da língua materna do falante no sistema da língua estrangeira que ele aprendeu. Por isso, alguns sons acabam sendo produzidos, ainda que eles não façam parte do inventário da nova língua que o falante estrangeiro está aprendendo. O falante nativo, por sua vez, percebe esses diferentes sons ou padrões sonoros como estranhos e, assim, o sotaque estrangeiro.

A riqueza que diferentes sotaques podem trazer para a língua local ou estrangeira é muito grande. As diferentes formas de dizer a mesma coisa ou pronunciar uma palavra de uma mesma língua é um campo riquíssimo para os estudos linguísticos, nos quais se encontra muito material para explicar como a língua se desenvolve em diferentes espaços, em diversos contextos e, até mesmo, através do tempo. Além disso, o sotaque carrega traços da identidade das pessoas, traços que envolvem fatores afetivos e sensação de pertencimento a um determinado grupo, pois através do modo que alguém pronuncia os sons, pode-se reconhecer a origem do falante.  Dessa maneira, pode-se dizer que todos os falantes têm sotaques e estes influenciam na forma como somos conhecidos, revelando nossas origens, nossas histórias, nossa identidade.