Palavrão é legal pra caral*o!

Todas as línguas conhecidas têm algum conjunto de palavras que podemos relacionar ao que chamamos de palavrão

Geralmente, associamos os palavrões a coisas ruins, que são faladas por pessoas que têm alguma fraqueza moral, são mal-educadas, e por isso eles devem, sob quaisquer circunstâncias, ser evitados. Mas para alguém que olha a língua com uma perspectiva científica, como um linguista, essa percepção dos palavrões serve somente para sugerir uma série de questões. Por exemplo, se os palavrões são tão ruins assim, por que eles existem? Aliás, por que eles são ruins? Será que todos os palavrões são igualmente ruins, ofensivos, feios, etc., ou há entre eles melhores e piores? Será que todas as línguas têm os mesmos palavrões? Será que os palavrões mudam ao longo da história, e o que é ofensivo hoje não era antes e talvez não seja mais no futuro? E, afinal, o que faz de uma palavra um palavrão?

Como você deve imaginar, essas são questões muito f*da de responder, mas são também legais pra cara**o!

Alguns estudos mostram que falar palavrões aumenta nossa resistência à dor e também nossa força

Vamos começar pela primeira das questões: por que existem palavrões? Bom, ainda que não tenhamos uma resposta completa, é interessante notar que todas as línguas conhecidas têm algum conjunto de palavras que podemos relacionar ao que chamamos de palavrão.

Se todas as línguas têm palavrões, então eles devem servir para alguma coisa, certo? De fato, alguns estudos mostram que falar palavrões aumenta nossa resistência à dor e também nossa força. Num desses estudos [8, 9, 10], os participantes do experimento tiveram que ficar o maior tempo que conseguiam com as mãos dentro de um balde de gelo (sim, é um pouco estranho, mas é em nome da ciência). Nesse caso, quando eles falaram palavrão – no caso, em inglês, ‘fuck’ – conseguiram aguentar mais tempo do que quem não falou palavrão. E se a pessoa falasse algo bem próximo de um palavrão, como ‘duck’, que se diferencia de ‘fuck’ por apenas um som, esse efeito de resistência não apareceu (em português, podemos pensar em alguém dizendo ‘porra’ e ‘poxa’). Num outro experimento [11], a tarefa foi aguentar um certo peso, e, ao falar palavrão, os participantes conseguiram aguentar mais. Não sei o que você acha, mas eu acho impressionante! É um poder quase mágico: falar um palavrão aumenta nossa força e nossa resistência a dor. Para mim, só isso já faz dos palavrões algo fabuloso!

Outro fato que chama a atenção sobre os palavrões é que eles não são sempre processados na mesma parte do cérebro que se dedica à linguagem comum, que usamos para descrever o mundo e falar sobre ele, e que não contém palavrões. Os palavrões são processados numa parte do cérebro conhecida como “sistema límbico”, que é também responsável por funções corporais básicas, como a respiração e o batimento cardíaco. Será que os palavrões desempenham também, em algum sentido, funções básicas? E, por isso, podem servir para aumentar o limite da dor e a resistência física nos humanos? Note como falar palavrão é muito mais do que simplesmente dizer coisas feias…

AS FUNÇÕES LINGUÍSTICAS DOS PALAVRÕES

Mas não é só para aumentar nossa tolerância física que servem os palavrões. Alguns linguistas [1, 7, 5], depois de investigaram como essas palavras funcionam, propuseram alguns usos para os palavrões, que são, ao menos:

(a) descritivo (palavrão no lugar de outra forma): Não deu certo! vs. Fudeu! / Errei vs. Fiz uma cagada
(b) enfático (intensificadores): Legal pra caralho!
(c) abusivo (ofensas, xingamentos): Seu filho da puta!
(d) idiomático: Vai dar merda! / Nem fudendo!
(e) catártico: Porra! / Caralho!

O uso catártico é aquele responsável por aumentar nossa resistência física e emocional [6], mas os outros são também igualmente intrigantes. O primeiro deles, o descritivo, faz com que pensemos novamente na sua própria razão de ser; afinal, se existe uma forma de dizer algo sem palavrão, por que há de haver uma com palavrão? Mas pense nas diferenças entre dizer “deu errado” e “fodeu”: não é possível dizer que as duas são sinônimas, correto? Há algo a mais sendo dito quando alguém usa “fodeu”: é tarefa dos linguistas desvendar o que é esse algo a mais, mas, seja lá o que for, sua existência já demonstra que os palavrões não podem ser sempre traduzidos por frases que não os contenham. Esse ponto fica ainda mais claro quando olhamos para o uso enfático; compare as frases abaixo:

(1) João é um ótimo advogado.
(2) João é um puta advogado.
(3) João é um advogado foda.

Deixando de lado quaisquer restrições quanto ao uso de palavrões, se você fosse recomendar os serviços prestados por João a alguém, qual das frases acima você usaria? Creio ser bastante tranquilo dizer que, para um falante de português brasileiro, as melhores recomendações seriam certamente (2) ou (3). E o que isso mostra? Que os palavrões têm um importante uso como intensificadores, salientando características e gostos [2, 3]: afinal, João não é só um ótimo advogado, mas é um puta advogado, ou, melhor dizendo, ele é um advogado foda!

Assim como o uso descritivo e enfático, os palavrões podem ser usados em expressões idiomáticas; vemos os palavrões sendo usados na criação de novas palavras e expressões que trazem consigo um nível a mais de significado e, por isso, são diferenciadas de suas contrapartes sem palavrão: qual jeito melhor de dizer ‘não’ em português brasileiro do que ‘nem fodendo’? E veja que não há mais nenhuma interpretação literal aqui: ‘nem fodendo’ não remete mais a algum ato sexual, mas simplesmente quer dizer “não” de uma maneira bastante incisiva.

Resta notar que o último uso, o abusivo, está longe de ser exclusivo dos palavrões. Afinal, é possível (i) ofender alguém sem usar palavrões e é possível (ii) usar palavrões sem ofender ninguém – deixo ao leitor o exercício de pensar nesses dois casos, que você provavelmente vive inúmeras vezes diariamente. Mas note que somente em um de seus usos os palavrões, a princípio, são ofensivos; de resto, eles desempenham vários papéis na estrutura linguística, e assim reduzir os palavrões a “coisas feias” é uma ideia equivocada.

TIPOS DE PALAVRÕES NAS LÍNGUAS DO MUNDO

Uma outra questão importante tem a ver com os tipos de palavrões presentes nas línguas do mundo. Mais uma vez, ao se dedicarem a esses estudos, os linguistas fizeram descobertas surpreendentes. Não interessa para qual língua se olhe, vamos encontrar palavrões, e eles vão pertencer invariavelmente a um desses 4 campos semânticos [1, 4, 5]: (i) blasfêmias; (ii) sexo; (iii) fluídos corporais; e (iv) ofensas e estigmas sociais e/ou raciais.
As blasfêmias têm a ver com o religioso, o sagrado versus o profano, e são condenadas há milênios (“não usar o nome do senhor em vão”); foram durante muitos séculos a principal fonte do que era considerado palavrão em português. Talvez não haja ainda muitos palavrões relacionados a esse campo no português de hoje, mas ele já foi muito presente e ainda é em muitas línguas.

Não interessa para qual língua se olhe, vamos encontrar palavrões, e eles vão pertencer invariavelmente a um desses 4 campos semânticos: blasfêmias; sexo; fluídos corporais; e ofensas e estigmas sociais e/ou raciais.

Certamente, a maior parte do que é considerado palavrão no português de hoje tem a ver com sexo (‘foda’, ‘caralho’, ‘boceta’, ‘cu’, ‘escroto’, ‘puta’, ‘corno’ etc.) e fluídos corporais (‘bosta’, ‘merda’, ‘mijo’, ‘porra’, etc.). Ainda nesses campos encontramos os itens relacionados à “linhagem familiar”: ‘filho da puta’, ‘puta que pariu’, etc. São áreas bastante ricas e produtivas para os palavrões, e têm alguns dos itens considerados mais “pesados” atualmente.

Finalmente, o último campo que fornece os palavrões para as línguas humanas é aquele que tem a ver com itens que discriminam e/ou ofendem indivíduos e grupos de indivíduos por suas características físicas e papéis sociais. Aqui encontramos os termos racistas, homofóbicos, xenófobos, e inúmeros outros que, infelizmente, são muito frequentes no português falado no Brasil hoje em dia, revelando uma faceta bastante ruim da nossa sociedade. Esses itens são particularmente sensíveis a questões sociais proeminentes numa certa época e têm quase sempre um grande poder ofensivo. É interessante notar que na televisão do Brasil de hoje toleramos alguns dos palavrões que têm a ver com sexo e fluídos corporais, mas não se pode usar um termo racista ou homofóbico (com razão, se quiserem saber minha opinião).

Como podemos ver, por mais criativos que possamos parecer quando se trata dos palavrões, eles formam, na verdade, um grupo bastante coeso nas línguas do mundo, e elas acabam por se “especializar” num ou noutro campo. Assim, há línguas cuja maioria dos palavrões têm a ver com o campo da blasfêmia, e outras nas quais eles vêm do campo do sexo, ou dos fluídos corporais, etc., e assim é possível classificar as línguas de acordo com a proveniência de seus palavrões… quem diria, hein?

PALAVRÕES E TABUS SOCIAIS

Já deve ter dado para perceber que mas nem todos os palavrões têm o mesmo peso: alguns até a nossa avó aceita, outros podem aparecer na TV num programa mais descontraído, e outros podem dar cadeia. Mas de onde vem a força ofensiva dos palavrões? O que dá a eles esse seu caráter?

Os palavrões surgem de áreas que são consideradas, por algum motivo, tabu numa certa sociedade e numa certa época

Os palavrões surgem de áreas que são consideradas, por algum motivo, tabu numa certa sociedade e numa certa época, e ao longo das línguas, como vimos, essas áreas são bastante comuns: sagrado, sexo, corpo, papel social. O peso de cada palavrão e sua força ofensiva vão variar de acordo com a valoração social que cada uma dessas áreas recebe numa dada época. Assim, num momento em que os preconceitos racial e social são fortemente combatidos, não é de se espantar que itens ligados a injúrias raciais e a orientação sexual sejam fortemente ofensivos; numa outra época, os termos mais fortes pertenciam, por exemplo, ao campo do sagrado. Quanto mais tabu é uma área (numa dada sociedade, numa da época), mais pesado será o item que se origina dela e é considerado palavrão (ou ofensivo). E essa dinâmica, conforme mostram vários estudos, já dura milênios, e não dá sinais de que deve mudar.

Mas essa mesma dinâmica explica tanto como um palavrão perde sua força, que acontece quando eu campo de origem passa a ser menos tabu, como é o caso de itens linguísticos que têm a ver com o corpo e com sexo – basta lembrar de palavras como ‘puta’, ‘porra’ e até (pra) ‘caralho, que vez por outra ouvimos nos meios de comunicação ) – e também como deve ser o futuro de uma língua com relação aos seus palavrões – basta olhar para o campo da sociedade que é mais delicado numa certa época. Por exemplo, há algumas décadas, chamar alguém de ‘gordo’ deveria certamente ser ofensivo, mas provavelmente era muito menos do que é hoje em dia, com a grande preocupação por um corpo (idealmente) perfeito, motivando a criação de palavras como ‘gordofobia’. A característica de ser ofensivo é um dos caminhos possíveis para que uma dada palavra se torne, com o passar do tempo, um palavrão. Se isso estiver correto, é bem provável que, no caso do português brasileiro, os piores palavrões sejam cada vez mais aqueles itens ligados ao quarto campo citado acima, o das injúrias sociais. Assim, não seria de se espantar que itens ligados à forma física ou psicológica de uma pessoa ganhassem contornos cada vez mais ofensivos em sociedades que têm uma expectativa de vida e de mudança corporal cada vez maior.

Essas são apenas algumas das questões que interessam a quem queira se aventurar a olhar os palavrões de um ponto de vista científico. Eles têm a ver com nosso cérebro, com nuances de significado linguístico e com a estrutura da sociedade que os emprega. Eles são muito mais do que itens ofensivos e têm uma dinâmica rica, e intimamente ligada ao seu tempo. Por isso, falar palavrão certamente não é coisa de gente mal-educada; antes disso, é simplesmente uma das coisas que nos torna humanos, gostemos disso ou não.

Referências

1. Bergen, Benjamin K. What the F: What Swearing Reveals About Our Language, Our Brains, and Ourselves. New York: Basic Books, 2016.
2. Gutzmann, Daniel. Use-Conditional Meaning: Studies in Multidimensional Semantics. Oxford: Oxford University Press, 2015.
3. Kaplan, D. The Meaning of “Ouch” and “Oops”. (transcrição de palestra). 1999.
4. Ljung, Magnus. Swearing: A Cross-Cultural Linguistic Study. New York: Palgrave Macmillna, 2011.
5. Mohr, Melissa. Holy Sh*t: A Brief History of Swearing. Oxford: Oxford University Press, 2013.
6. Philipp, M. C.; Lombardo, L. Hurt feelings and four letter words: Swearing alleviates the pain of social distress. Eur. J. Soc. Psychol., 47: 517–523; 2017.
7. Pinker, Steven. The Stuff of Thought: Language as a Window Into Human Nature. New York: Viking, 2007.
8. Robertson, O.; Robinson, S. J.; Stephens. R. Swearing as a response to pain: A cross-cultural comparison of British and Japanese participants. Scandinavian Journal of Pain, Volume 17, Issue 1: 267–272; 2017.
9. Stephens, R.; Atkins, J.; Kingston, A. Swearing as a response to pain. Neuroreport, Aug 5; 20 (12): 1056-60, 2009.
10. Stephens, R.; Umland, C. Swearing as a response to pain-effect of daily swearing frequency. J Pain, Dec; 12(12): 1274-81; 2011.
11. Stephens, R.; Spierer, D.K.; Katehis, E. Effect of swearing on strength and power performance. Psychology of Sport and Exercise. Volume 35: 111-117; 2018.

O autor
Renato Basso é doutor em Linguística pela Unicamp e professor de Linguística na Universidade Federal de São Carlos. Sua pesquisa trata de como as palavras produzem sentido, uma área da Linguística chamada “semântica”.