Como criamos significados na linguagem cotidiana?

A verdade, entretanto, é que as metáforas ocorrem na linguagem como reflexo do nosso pensamento. Somos capazes de pensar metaforicamente e, por isso, também falamos metaforicamente.

Lilian Ferrari · Lilian Ferrari é doutora em Linguística, e estuda como a mente humana é capaz de criar significados e representá-los na linguagem

É comum, nos dias atuais, ouvirmos expressões como “maratonar um seriado”, “combater fake news” ou “bloquear um contato no WhatsApp”. E embora não tenhamos nenhuma dificuldade em produzir ou compreender essas expressões, nem sempre nos damos conta de que esses usos, como tantos outros em nossa linguagem cotidiana, não são literais, mas sim metafóricos. Isso porque tudo o que nos foi ensinado sobre metáforas faz com que pensemos que só é possível encontrá-las em textos elaborados, produzidos por especialistas que têm uma habilidade especial no manejo da linguagem, tais como escritores, poetas e afins. 

A verdade, entretanto, é que as metáforas ocorrem na linguagem como reflexo do nosso pensamento. Somos capazes de pensar metaforicamente e, por isso, também falamos metaforicamente. E se é assim, faz sentido que não apenas os textos literários, mas também a nossa linguagem cotidiana seja permeada de metáforas.

As metáforas do tempo

Mas como são esses processos de pensamento?   Por que, afinal de contas, temos a habilidade de pensar metaforicamente? A resposta é relativamente simples, e tem a ver com o fato de que temos que lidar com ideias que não fazem parte de nossa experiência corporal mais direta. Se aquilo que podemos ver, ouvir, provar, cheirar ou tocar é acessível à nossa compreensão, o mesmo não acontece quando se trata de uma ideia abstrata como, por exemplo, o tempo. Embora tenhamos que lidar com o tempo em nosso cotidiano – acordamos cedo para trabalhar, tomamos remédios com hora marcada, etc. -, o tempo não é diretamente captável por nossos sentidos. Diferentemente de casas, árvores, carros, livros e tudo o que faz parte de nossa experiência direta, o conceito de tempo é abstrato. E, por isso, para pensarmos sobre o tempo fica mais fácil usar a estratégia de “traduzi-lo” para algo mais familiar. Essa espécie de tradução é justamente a metáfora, que nos permite tratar conceitos abstratos de forma mais concreta.

A verdade, entretanto, é que as metáforas ocorrem na linguagem como reflexo do nosso pensamento. Somos capazes de pensar metaforicamente e, por isso, também falamos metaforicamente.

No caso do tempo, uma das possibilidades é pensar no tempo como se fosse espaço, e mais especificamente, como se fosse um local.  Nesse caso, assim como podemos falar que estamos em um determinado lugar (ex. “Estamos na praça”), podemos nos referir a um período de tempo usando a mesma ideia de local (ex. “Estamos na primavera”). Da mesma forma, para localizar um estabelecimento comercial, podemos dizer “A loja fica logo ali na frente”, e também podemos nos referir a um período de tempo futuro dizendo “O Natal está logo ali na frente”. Objetivamente, sabemos que o Natal não está logo ali na frente da mesma forma que a loja; e que estar na primavera não é o mesmo que estar na praça. Não nos confundimos, mas a metáfora nos permite apreender essas ideias temporais de forma imediata.

Ainda tomando o espaço como base, outra possibilidade é pensar no tempo como uma entidade que se move, como ilustram os exemplos “O Natal está chegando”, “O tempo passa rápido”, “O dia hoje voou”. Novamente, ninguém vê objetivamente o Natal chegando, o tempo passando ou o dia voando. Mas as ideias associadas a esses processos de deslocamento no espaço são transferidas para os conceitos temporais. Entendemos, assim, que o Natal vai acontecer em breve, e que há uma impermanência dos eventos temporais.

Diferentes línguas, diferentes metáforas

Outro aspecto interessante é que a sentença “O Natal está logo ali na frente” demonstra que o futuro é concebido como um local que está à nossa frente. Inversamente, o passado é retratado como um local que fica atrás de nós (ex. “Essa moda ficou para trás”). Entretanto, o que é ainda mais interessante é que embora essa seja a construção metafórica observada em português e na maioria das línguas, há línguas em que se dá o oposto. Em Aymara, língua indígena falada na América do Sul, o passado é concebido como um local que está “à frente” e o futuro é o local que fica “atrás”. Assim, os falantes de Aymara dizem algo como “ano da frente” para se referir a “ano passado”, ou “um dia atrás” para indicar “amanhã”. Por mais estranha que essa diferença possa parecer, a verdade é que futuro e passado não estão literalmente à frente ou atrás do falante, porque não são fenômenos que ocorrem no espaço. Sendo assim, qualquer escolha é arbitrária e diferentes perspectivas podem ser adotadas.

Em Aymara, língua indígena falada na América do Sul, o passado é concebido como um local que está “à frente” e o futuro é o local que fica “atrás”. Assim, os falantes de Aymara dizem algo como “ano da frente” para se referir a “ano passado”, ou “um dia atrás” para indicar “amanhã”.

Metáforas cotidianas e atuais

No caso da expressão “maratonar um seriado”, mencionada no inicio deste texto, a metáfora é um pouco mais complexa, porque envolve não apenas a ideia de deslocamento no espaço, mas também a ideia de correr vários quilômetros, que caracteriza uma maratona. De qualquer forma, essas ideias são transferidas para o processo temporal mais abstrato de assistir a um seriado, criando a imagem de que a atividade ocorreu de forma ininterrupta, extenuante e durou até a sua finalização.

Podemos falar em   detonar ou arrasar alguém em um debate, combater informações falsas, como é o caso de fake news, ou bloquear alguém em aplicativos de troca de mensagem. Nesse caso, a comunicação verbal é tratada como se fosse uma ação realizada em uma guerra ou combate.

Outra metáfora bastante comum é a concepção da comunicação entre duas pessoas como transferência de objeto de uma para outra.  Um exemplo comum é a expressão  “dar uma ideia”, cujo caráter metafórico fica evidente quando percebemos que não se pode, literalmente, retirar ideias da cabeça e entregá-las a alguém. A comunicação é, na verdade, um evento complexo que envolve processos de formulação de ideias, codificação dessas ideias em palavras, transmissão física de sons vocais até o nosso interlocutor, e vice-versa. Em especial, quando se trata de discussões, há várias expressões na linguagem cotidiana que deixam claro que essas transferências verbais são concebidas como eventos bélicos. Podemos falar em   detonar ou arrasar alguém em um debate, combater informações falsas, como é o caso de fake news, ou bloquear alguém em aplicativos de troca de mensagem. Nesse caso, a comunicação verbal é tratada como se fosse uma ação realizada em uma guerra ou combate.

Em suma, as metáforas ocorrem nas expressões que usamos no dia-a-dia porque são estratégias do nosso pensamento para acessar conceitos abstratos. Toda a criatividade que lhes caracteriza, portanto, nada mais é do que um reflexo da enorme capacidade imaginativa da mente humana. O campo da Linguística Cognitiva é especialmente interessado nessa nossa capacidade imaginativa. Se você quiser saber mais sobre metáforas, pode ler o livro “Metaphors we live by”, de George Lakoff & Mark Johnson (1980), publicado em português como “Metáforas da Vida Cotidiana”, pela Mercado de Letras. Para saber sobre pesquisas sobre a construção cognitiva do significado, de um modo geral, pode também conhecer o trabalho do LINC-UFRJ, Laboratório de Pesquisas em Linguística Cognitiva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.