Como as dinâmicas sociais do passado afetam a língua que usamos hoje?

A língua nada mais é do que “camadas sobre camadas de história”

Victor Carreão · Victor Carreão é doutorando em linguística. No momento, estuda como as dinâmicas sociais do passado refletem na língua e nos usos e práticas da linguagem em tempos atuais.

Um dos grandes mistérios das línguas, ao qual muitos linguistas se dedicam, é o fato de que elas se transformam sem que seus falantes possam transformá-las: indivíduos, sozinhos, não promovem mudanças linguísticas. Muitos cientistas das línguas e das linguagens citam essa intrigante característica em seus trabalhos, mas não é preciso pensar em grandes linguistas para chegarmos a essa conclusão. Se pensarmos nas gírias que usamos no dia-a-dia, podemos encontrar muitas coisas que, para alguns, são “da hora”, mas que, para outros, são “pra frentex”. Aqueles mais jovens poderão se identificar com a primeira expressão enquanto aqueles que já viveram mais anos provavelmente já usaram a segunda. Mas, por que uma das gírias sumiu e a outra ganhou espaço? Quais são as chances de um grupo de pessoas ter se reunido um dia e dito: “ok, a partir de hoje ‘da hora’ é uma gíria; bora todo mundo sair usando”? Exatamente, muito poucas.

Não são apenas palavras novas, como as gírias sobre as quais falamos, que podem sofrer modificações na língua. Outras características da língua, como, por exemplo, os sons que produzimos ao falar ou até mesmo o uso dos plurais, também estão sujeitas a mudanças. Essas e outras inovações linguísticas podem ser transmitidas (ou não) de pessoa para pessoa e de geração para geração em um processo que acontece também em decorrência de fatores sociais, como nos mostram as pesquisas sociolinguísticas. William Labov, já citado em outros textos nesta mesma revista, é o sociolinguista que desenvolveu uma das diferentes formas de levantar dados para verificar a relação entre variação e mudanças linguísticas com fatores sociais: a entrevista sociolinguística.

Não são apenas palavras novas, como as gírias sobre as quais falamos, que podem sofrer modificações na língua. Outras características da língua, como, por exemplo, os sons que produzimos ao falar ou até mesmo o uso dos plurais, também estão sujeitas a mudanças.

Nessas entrevistas (que podem ser mais ou menos descontraídas), os entrevistados (escolhidos de forma a representar a comunidade ou grupo de que fazem parte) geralmente são classificados conforme suas características censitárias (sexo/gênero, idade, classe social, nível educacional, entre outros) e também podem ter outras características extralinguísticas registradas (como o local de sua residência, profissão, rede de contatos, etc.). Após as gravações, o levantamento de dados é realizado conforme o fenômeno linguístico que o pesquisador estuda: um determinado som (como a pronúncia do “r”), uma determinada palavra (como as gírias) ou até mesmo a ordem das palavras em uma frase (como o uso da negativa: “não vou” ou “vou não”). E sim, isso quer dizer que o pesquisador precisa contar todos os sons do “r”, por exemplo, feitos pelo entrevistado e catalogar os contextos linguísticos em que eles ocorrem (meio da palavra, final da palavra, antes de uma vogal, e por aí vai).

Dessa maneira, é possível realizar testes estatísticos que buscam verificar se alguma característica linguística e/ou extralinguística pode se constituir como um contexto favorável à variação e à mudança linguística. Se pensarmos no som do “r” como exemplo, é comum apagarmos esse som ao dizer “eu vou pega(r) o livro”, mas nem tanto quando dizemos “eu vi a flo(r)”. A partir desses exemplos, é possível perceber que existe um contexto linguístico que favorece o apagamento do “r” e cabe ao sociolinguista verificar quais características extralinguísticas poderiam favorecer esse fenômeno.

[P]ensar no contexto social para reconstruir a língua permite utilizar o passado e suas dinâmicas sociais para explicar o presente, pautando-se no estudo histórico com uma abordagem sociolinguística.

É possível investigar o mesmo tipo de questão, mas por outros meios, se pensarmos em tempos passados. Como as entrevistas não podem ser gravadas com falantes de cem anos atrás (ou até mesmo mais), documentos históricos, como cartas pessoais, são “amostras de fala” que permitem uma pesquisa guiada pela sociolinguística histórica. Dessa maneira, assumimos que o texto escrito reflete, de certo modo, o comportamento linguístico (oral) das pessoas de determinada época. Suzanne Romaine, uma das primeiras sociolinguistas históricas, argumenta que pensar no contexto social para reconstruir a língua permite utilizar o passado e suas dinâmicas sociais para explicar o presente, pautando-se no estudo histórico com uma abordagem sociolinguística.          

Tal tarefa não é simples, pois documentos históricos escritos, como cartas pessoais, são escassos e nem sempre permitem a criação de uma amostra de falantes. A leitura e a escrita também não eram de amplo acesso à boa parte da população em tempos pretéritos. Mas, mesmo um pequeno conjunto de cartas trocadas entre duas pessoas nos ajuda a ter um recorte da fala da época e a verificar, com base no contexto da comunicação, seus interlocutores e a época em que se encontram. Assim, podemos entender como determinados fenômenos de variação e mudança linguística podem ter se espalhado em uma comunidade (às vezes refletindo na fala das pessoas de tempos atuais).

[A] língua nada mais é do que “camadas sobre camadas de história”.

Por fim, gostaria de citar um trecho do filme ‘Tolkien’ (2019), sobre a vida do autor do livro ‘O Senhor dos Anéis’. Em determinado momento da película, um professor de Tolkien menciona que a língua nada mais é do que “camadas sobre camadas de história”. Do latim ao nosso português, são muitas as camadas históricas que podem ter ajudado na preservação ou no descarte de determinadas características linguísticas. A reconstrução da dinâmica social do passado pode nos ajudar a melhor entender esses fenômenos e a língua que falamos hoje – um mistério sempre muito instigante.

Para saber mais:

LABOV, W (1972). Sociolinguistic Patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. [Padrões Sociolinguísticos. Trad.: Marcos Bagno; Marta Scherre e Caroline Cardoso. São Paulo: Parábola, 2008.]

ROMAINE, S. Socio-Historical Linguistics. Cambridge University Press: Cambridge, 2009.

WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG, M. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2006 [1968].