Por que os migrantes (não) mudam seu modo de falar?

Quais são os fatores relacionados à mudança (ou manutenção) do sotaque do migrante?

Amanda de Lima Santana · A autora é mestra em Linguística. Atualmente, desenvolve uma pesquisa de doutorado, na Universidade de São Paulo, que investiga a fala de migrantes sergipanos em São Paulo.

A população da região metropolitana de São Paulo é formada em grande parte por migrantes de vários lugares do país, principalmente por aqueles advindos das regiões Norte e Nordeste, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, de 2011 – 30 % da população de São Paulo de 30 a 60 anos de idade são de pessoas vindas do Nordeste e do Norte do país. Nesse cenário, é inegável que os falares que circulam em São Paulo são diversos.

Eu mesma nasci em São Paulo, mas sou filha de sergipanos e, dentro de casa, convivi com o sotaque (ou “variedade linguística”) dos meus pais. O curioso é que mesmo depois de 40 anos da migração, meus pais ainda utilizam traços linguísticos típicos de Sergipe e isso sempre chamou a minha atenção.

Nesse contexto, comecei a me questionar sobre os fatores envolvidos na manutenção ou na mudança da variedade linguística de um migrante, ou seja, o que faz com que os migrantes mudem ou não seu sotaque? As pesquisas realizadas sobre o assunto apontam para múltiplos caminhos.

Idade de migração

Existe uma hipótese largamente aceita nos estudos linguísticos de que a mudança na fala de uma criança acontece mais rapidamente do que na de um adulto. Por esse motivo, as pesquisas se atentam à idade com a qual o indivíduo migrou para verificar se aqueles que migraram mais cedo mudaram mais seu jeito de falar em relação àqueles que migraram mais velhos.

Investiguei, por exemplo, a fala de 27 migrantes sergipanos que moram na região metropolitana de São Paulo. Nesse estudo, analisei a pronúncia das consoantes T e D antes da vogal i (como em “tia” e “dica”), um traço linguístico, dentre outros, que diferencia os falares de Sergipe e de São Paulo. No falar prototípico da capital paulista, a pronúncia dessas consoantes é feita com um “chiado” ou com palatalização (que é o termo linguístico utilizado nesses casos): a palavra “tia”, por exemplo, é produzida como “tchia”. Em Sergipe, por outro lado, a tendência é pronunciar essas consoantes sem a palatalização. Verifiquei, então, que aqueles que saíram de Sergipe mais jovens tendem a falar do modo mais típico da cidade de São Paulo, enquanto que os que migraram mais velhos tendem a falar de modo menos semelhante aos paulistanos.

Por outro lado, não são todas as pesquisas que encontram o mesmo resultado. É o caso do estudo realizado pela linguista Livia Oushiro, que analisou as formas de negação sentencial (dentre outros fenômenos) na fala de 40 alagoanos e paraibanos residentes em Campinas (cidade do interior de São Paulo). No português brasileiro, é possível criar sentenças negativas com o advérbio “não” ocupando três diferentes posições: antes do verbo (“Não sei”), antes e depois do verbo (“Não sei não”) ou depois do verbo (“Sei não”). Nos falares do Nordeste, o segundo e o terceiro tipos de sentença são mais frequentes que em São Paulo, e por isso a pesquisadora esperava que quanto mais jovem o falante tivesse migrado, menos ele utilizaria o segundo e o terceiro tipos de negação. No entanto, ela verificou que não há tal correlação nos dados dos migrantes analisados.

Ao comparar o resultado da minha pesquisa com os de Livia Oushiro, temos indícios de que a idade de migração é relevante para alguns aspectos linguísticos (pronúncia de T e D), mas não para outros (formas de negação sentencial).

Contato com pessoas da comunidade anfitriã

Outros estudos, por sua vez, identificaram que as mudanças linguísticas ocorridas na fala do migrante dependem das relações que ele estabelece na comunidade anfitriã, isto é, o lugar para onde o falante migrou.

Numa pesquisa publicada em 1985, Stella Maris Bortoni-Ricardo verificou que a mudança na fala de pessoas originárias de Minas Gerais que haviam migrado para Brazlândia (em Brasília) relacionava-se aos vínculos estabelecidos por eles na nova localidade. A pesquisadora constatou que havia mais traços linguísticos da comunidade anfitriã na fala dos homens porque eles, tipicamente, exerciam suas profissões fora do ambiente doméstico e, assim, tinham mais chances de entrar em contato com a nova variedade linguística. Já as mulheres, em sua maioria, eram donas de casa e mantinham pouco contato com pessoas que não fossem seus familiares ou vizinhos também migrantes. Por isso, elas tendiam a utilizar majoritariamente formas linguísticas da comunidade de origem. Desse modo, a pesquisadora constatou que os homens estavam mudando mais seu modo de falar do que as mulheres por conta da configuração de suas redes de contatos.

Mas na pesquisa que realizei sobre migrantes sergipanos em São Paulo, não observei o mesmo resultado de Stella Bortoni-Ricardo: com relação à pronúncia de T e D antes da vogal i, não encontrei diferenças entre os migrantes que estabeleciam, em seu cotidiano, mais contato com paulistanos e aqueles que mais conversavam com nordestinos. Ou seja, os contatos estabelecidos em São Paulo pelos sergipanos entrevistados não se mostraram relevantes para suas pronúncias de T e D.

Questão de identificação

O modo como as pessoas se identificam dentro de uma comunidade também pode ser relevante para a mudança na fala dos migrantes.

Naquela pesquisa já mencionada sobre alagoanos e paraibanos residentes em Campinas, a linguista Livia Oushiro levou em consideração esse pressuposto. Nas entrevistas realizadas para o estudo, a entrevistadora perguntava aos migrantes quanto, em uma escala de 1 a 10, eles se consideravam alagoanos/paraibanos atualmente. Tais pontuações foram analisadas estatisticamente em relação, dentre outros elementos linguísticos, à pronúncia do R em final de sílaba, como nas palavras “poRta” e “caRta”. Em Campinas, as pronúncias mais frequentes desse segmento são o retroflexo (popularmente denominado “r caipira”) e o tepe (som produzido com uma batida da ponta da língua no céu da boca), diferentemente dos estados nordestinos, em que a pronúncia prototípica é a fricativa (som esse semelhante ao dígrafo RR da palavra “carro”). A autora verificou que os migrantes que se identificam mais com seu estado de origem (que se autoatribuíram notas altas) menos frequentemente tendem a utilizar as formas comuns de Campinas.

Contudo, a pesquisadora não constatou uma correlação entre essas notas autoatribuídas e as taxas de uso de T e D diante da vogal i (traço linguístico esse descrito anteriormente). Ou seja, não se observou uma relação entre aqueles migrantes que se identificam mais com seus estados de origem e o modo como pronunciam T e D.

Fora do contexto brasileiro, o trabalho do pesquisador James Stanford, publicado em 2008, sobre uma comunidade agrícola no Sudoeste da China, chamada Sui, investiga uma questão semelhante. É tradição desse povo que as mulheres se casem com homens que pertençam a um clã diferente daquele de onde elas nasceram (prática essa chamada de “exogamia”). Tais clãs apresentam traços linguísticos um pouco diferentes uns dos outros, como vocabulário e pronúncias de determinados sons. Quando as mulheres se casam e migram para o clã dos maridos, elas não mudam seu modo de falar, mesmo após muitos anos da realização do casamento. Stanford atribui esse comportamento à tradição, entre as mulheres Sui, de manterem sua identidade de origem depois de casadas. Com efeito, elas podem até mesmo ser ridicularizadas pela comunidade se utilizarem elementos linguísticos característicos do clã de seus maridos. Aqui, portanto, temos um caso de manutenção do sotaque de origem por questões de identidade.

Muitas possibilidades de análise

Descobrir como (e por que) migrantes mudam seu jeito de falar é uma tarefa extremamente complexa, e por isso muito interessante.

Há pesquisas sobre o tema que lidam com outras hipóteses e fatores, como o tempo de permanência na comunidade anfitriã, o nível de escolaridade do migrante, quem é seu interlocutor, ou mesmo o tipo de traço linguístico a ser analisado. Neste texto, meu intuito não foi esgotar todas as possibilidades de investigação, mas sim trazer pesquisas que explicitam a diversidade de fatores relevantes para a mudança (ou manutenção) de uma variedade linguística pelos falantes e que os resultados das análises são variáveis.