Saber falar inglês pode mudar a forma como falamos português?

Sobre alguns mitos a respeito do bilinguismo

Mara Guimarães · Mara P. Guimarães é doutora em Linguística e estuda como conhecer outra língua modifica a forma como falamos no geral.

“É assim mesmo que fala isso em português?” – se você fala inglês há algum tempo, você provavelmente já teve essa sensação de falar alguma coisa lhe que pareceu estranha na sua própria língua.

Isso acontece porque, ao contrário do que possa parecer, uma pessoa bilíngue não é equivalente a duas pessoas monolíngues em uma mente só – e sim, isso inclui você, falante do português que aprendeu inglês aqui no Brasil e nunca morou fora.

O português e o inglês interagem e ficam disponíveis na mente do falante o tempo todo e, uma hora ou outra, a língua que não estamos usando acaba aparecendo na conversa, meio disfarçada: às vezes, o português parece inglês e vice-versa.

Esse “disfarce” é, na verdade, resultado do que chamamos de compartilhamento representacional: vários estudos sobre bilinguismo nas últimas décadas sugerem que as informações sobre as duas línguas do bilíngue ficam armazenadas de maneira compartilhada na mente do falante, e não separada. Este corpo de estudos sugere também que informações sintáticas (ou seja, informações sobre a maneira como formamos frases) têm natureza abstrata e não são exclusivas a uma língua ou outra. Em termos práticos, imagine que você quer contar para alguém o que está acontecendo nesta imagem:

Você pode descrever o que está vendo dizendo “o cachorro mordeu o menino”, ou pode dizer que “o menino foi mordido pelo cachorro”, por exemplo. Apesar de serem dois jeitos apropriados de descrever o que está acontecendo na imagem, a diferença entre essas duas frases é chamada de alternância de voz: a primeira frase está na voz ativa e, a segunda, na voz passiva. Dentro da forma atual como compreendemos a fala, sua decisão entre utilizar uma frase ou outra é muito provavelmente feita antes de você decidir se vai usar o português ou o inglês: primeiro, você decide entre a ativa ou a passiva, e, depois, você decide entre o português ou o inglês.

Um aspecto importante das línguas que influencia essa primeira escolha é a distribuição de frequência, que mostra quantas vezes e em quais contextos uma forma de frase acontece dentro de uma língua. Em 2016, dois professores de língua inglesa da UFMG analisaram bancos de transcrições de fala de brasileiros e estadunidenses e perceberam que os estadunidenses, falantes do inglês, produzem quase o dobro de frases na voz passiva em relação aos brasileiros, falantes do português.

Veio, então, o questionamento: se as informações sintáticas são compartilhadas entre o português e o inglês, e frequência da ocorrência de uma estrutura sintática influencia a escolha do falante, será que a pessoa que fala português e inglês (bilíngue) usa mais a voz passiva do que uma pessoa que só fala português (monolíngue)?

Para tentar responder essa pergunta, foram feitos dois experimentos. Em primeiro lugar, era preciso saber se a diferença na distribuição da passiva encontrada em 2016 tinha origem em algum problema de compreensão da passiva por falantes do português. Investigamos essa questão utilizando uma tarefa chamada julgamento de aceitabilidade, na qual os participantes leem frases e dão a elas uma nota entre 1 e 5 (ou 1 e 7) baseando-se somente nas suas próprias impressões: 1 para frases completamente inaceitáveis na língua, 5 (ou 7) para frases completamente aceitáveis e 2-4 (ou 2-6) para frases no meio termo. Os resultados deste experimento mostraram que os falantes do português, tanto bilíngues quanto monolíngues, compreendem a voz passiva tão bem quanto compreendem a voz ativa. Problemas de compreensão não são o motivo por trás da diferença de produtividade da passiva nas duas línguas.

Eliminada a questão da compreensão, restou saber se os bilíngues usam mais a voz passiva no português do que os monolíngues. Foi feito, então, um experimento de descrição de imagens, de maneira muito similar àquela que você foi convidada ou convidado a fazer ali em cima. Os participantes viram 24 imagens que poderiam ser descritas utilizando tanto a voz passiva quanto a voz ativa e descreveram essas imagens em voz alta. Os resultados foram muito claros: os bilíngues produziram um número significativamente maior de descrições na voz passiva em relação aos monolíngues, o que sugere que as informações sintáticas do inglês influenciam a fala em português. Lembra do estranhamento que mencionamos lá em cima? Ele pode estar acontecendo porque, em um dado contexto, você (não deliberadamente) escolheu uma forma de sentença mais comum no inglês e a utilizou no português.

Os resultados deste estudo foram importantes por dois motivos principais. Em primeiro lugar, oferecemos evidências a favor do compartilhamento representacional bilíngue, uma vez que a produção oral dos bilíngues foi muito diferente da dos monolíngues em relação ao uso da passiva como consequência do compartilhamento de informações sintáticas do inglês.

Em segundo lugar, observar esses efeitos de bilinguismo dentre brasileiros que aprenderam inglês e residem no Brasil fortalece a noção de que o bilinguismo não é um fenômeno limitado àqueles que aprenderam as duas línguas ao mesmo tempo, ou que vivem em um ambiente onde a língua oficial é a língua estrangeira.

A desmitificação dessa noção limitada de bilinguismo é importante não só para traçarmos com precisão o perfil dos brasileiros bilíngues, mas também para fazermos análises bem fundamentadas do próprio português. Quanto melhor conhecemos o falante, melhor conhecemos a língua.