“Subsido” para reflexões linguísticas: estudo de um caso de monotongação no português do século XVIII

Um caso de monotongação registrado em documentos históricos do português brasileiro.

Marcelo Módolo e Maria de Fátima Nunes Madeira · Marcelo Módolo é professor da FFLCH-USP e pesquisador do CNPQ, e Maria de Fátima Nunes Madeira é mestranda em Filologia e Língua Portuguesa pela FFLCH-USP.

Esse artigo discute a monotongação de ditongos crescentes na história do português, tendo como estudo de caso “– dio” da palavra “subsídio”.  A monotongação é entendida como mudança fonética que consiste na redução, a um único som vocálico, dos dois elementos de um ditongo: deste modo, “-dio” passaria a “do”, sendo a palavra “subsídio” grafada como “subsído”.

Trabalhar com documentação antiga dá-nos sempre a oportunidade de observar que algumas formas diferentes de se utilizar da língua já eram produzidas em séculos anteriores.

Por mais formal que seja a escrita de qualquer documento em análise, o escrivão – via de regra – deixa escapar formas que estariam em concorrência, mas que, por algum motivo, não são confirmadas pelos escritores clássicos, tidos como possuidores de bom padrão de língua.Os tempos eram outros, a gramaticografia – as descrições do português em forma de gramáticas – era pequena e a imposição de normas ortográficas não era rígida como nos tempos atuais.

 Um dos testemunhos da Representação da Câmara da Vila Real de Sabará à D. Maria I, rainha de Portugal, datado de 1777, depositado no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, mostra-se rico nesse sentido.

Nesse documento, escrito em português formal, pois continha um texto que chegaria às mãos da Rainha, a Câmara desmente informes enviados por D. José Luís de Meneses Castelo Branco e Abranches — conde de Valadares e então governador de Minas Gerais — e afirma que a Capitania de Minas Gerais não estava mais em condições de enviar o subsídio financeiro para a reconstrução de Lisboa, destruída no terremoto de 1755.

O manuscrito que transcrevemos abaixo apresenta um quadro de variação, de usos concretos da língua, que merece destaque: três ocorrências da palavra “subsidio” e duas da palavra “subsido”.

A primeira forma já havia sido consagrada pelo dicionarista carioca Antonio de Moraes Silva na primeira edição do Diccionario da lingua portugueza de1789:

(i) […] nos constrange para assignar em nome do povo
outroz dez annos de Subsidio na forma cons
tante do documento numero. 3º. […]
(ii) […] entaõ, enfraquecidas; quem deixa de conhecer
         que a sua decadencia lhe provem deste Subsidio
E sem
(iii) […] deste Subsidio taỏ Onerozo, que sô a violen=
cia pode vencer, o que o estado da terra e as […]

A segunda forma, por sua vez, não havia sido abonada. Vejamos:

(iv) […] da Carta Regia inserta no documento numero
1º. offerecemos aquelle Subsido voluntario por es=
paço de dez annos somente: Esta clauzula, […]
(v) […] Sepultar a huns entre as Ruinas dos outroz,
e bom se via que este subsido aplicado para a Reedi-
ficaçaỏ de Lisboa como Capital do Reino […]

O que essa oscilação de grafia pode significar já no século XVIII?

Partindo de uma análise sincrônica do português paulistano atual – isto é, o modo em que se encontra a língua no momento presente – observamos que este “i” tem caráter flutuante, inclusive na fala. Em uma pronúncia lenta, “-dio” pode virar duas sílabas: “di-o” como em “sub-si-di-o”, perfazendo um hiato, grupo de duas vogais contíguas que pertencem a sílabas diferentes; já em “-dio”, como em “sub-si-dio”, composto por semivogal e vogal, a sílaba perfaz um ditongo crescente: a emissão de dois fonemas vocálicos numa mesma sílaba, caracterizada pela vogal [o], que nela representa o pico de sonoridade, enquanto a semivogal [j] é enfraquecida.

Além disso, essa semivogal tende a desaparecer no português paulistano contemporâneo. Por exemplo, a palavra “quociente” não é pronunciada da forma [kwɔ.sjẽ.tʃi], mas, sim, mais comumente [ko.sjẽ.tʃi], daí a grafia “cociente”; a palavra “quatorze” não se pronuncia [kʷa.ˈtoɾ.zɪ], mas, sim, mais comumente [ka.ˈtoɾ.zɪ], igualmente motivando a grafia “catorze” – assim eliminando o [w], que denota na transcrição a semivogal “u”. Em verdade, o ditongo crescente se mantém em português em poucas palavras, tais como: “água”, “guarda”, “língua”, “quadro”, “quatro”, “quarto” e seus possíveis derivados.

Há também uma questão de aquisição da linguagem que poderia ser relembrada: enquanto crianças adquirem facilmente os ditongos decrescentes, como “pai”, “mãe” e “mau”, por exemplo, o mesmo não acontece com os ditongos crescentes, pois provavelmente encontraremos realizações como [ˈa.gɐ] ao invés de [ˈa.gwɐ] para a palavra “água”.

Portanto, algumas razões fonético-fonológicas e de aquisição da linguagem – audíveis no português paulistano atual – seriam provavelmente observáveis no português do século XVIII e poderiam justificar a oscilação ortográfica no manuscrito citado, ainda que o escrivão tenha mãos hábeis (com caligrafia, provavelmente pessoa culta), afinal fora o escolhido para escrever à Rainha.

Ao que tudo indica, essa monotongação “-dio > -do” setecentista continua no português atual, resultando em grafias oscilantes. Em uma rápida pesquisa no Google, de um total de 12.231.800 ocorrências para “subsídio” e “subsído”, encontramos 31.800 (0,26%) resultados para “subsído” e 12.200.000 (99,74 %) para “subsídio”. Apesar de pequenos proporcionalmente, os números da forma “subsído” constatam que a tendência perdura.

Assim, apesar de em um único documento do século XVIII, escrito por mãos hábeis, encontrarmos diferentes grafias para a palavra “subsídio”, podemos afirmar que esse fenômeno de variação ainda é recorrente na língua portuguesa, já que ele continua a acontecer igualmente sob regramento ortográfico mais austero, conforme demonstra a pesquisa feita no Google. Por ser bastante comum na fala, o fenômeno da monotongação não sofre estigma quando utilizado nesse contexto. Entretanto, quando é refletido na escrita, passa a ser visto como problema, já que temos uma ortografia oficial que rege a escrita de todos os usuários da língua.

As dificuldades desses escrivães do século XVIII, funcionários alfabetizados das sedes administrativas que muitas vezes se viam diante do papel, da tinta, da pena e da urgência na produção de um documento, mas longe de um compêndio ortográfico ou do hábito de verificar as regras prescritas, são as semelhantes às dos escribas atuais, levando-os todos a recorrer, inúmeras vezes, à maneira como pronunciam as palavras, para escrevê-las.

A língua falada é mais forte que regras, sempre. Tentar conter essas variações é como “querer tapar o sol com peneira”, como diz a expressão popular.