Linguística Forense: quando CSI ou Suits encontram a Linguística

O trabalho de linguistas como peritos, assistentes ou consultores em questões jurídicas tem crescido nas últimas décadas.

Dayane Celestino de Almeida · Dayane Celestino de Almeida é doutora em linguística pela USP e professora do Departamento de Linguística Aplicada da Unicamp. Ela estuda aplicações da linguística em contextos forenses, principalmente no que diz respeito à identificação de autoria textual e elaboração de perfis sociolinguísticos.

Você já deve ter visto a série de TV americana CSI – Crime Scene Investigation, que retrata investigadores e peritos que coletam e analisam vestígios materiais de cenas de crime. Vez ou outra, é possível que tais vestígios sejam linguísticos, certo? Um bilhete deixado pelo assassino, uma gravação de uma conversa telefônica combinando uma ação criminosa, ou ainda um perfil de rede social contendo discurso de ódio. Ora, se cientistas da área da biologia são os responsáveis por analisar vestígios envolvendo, por exemplo, sangue, DNA ou saliva, faz todo o sentido que um cientista da língua(gem) – ou seja, um linguista – seja o responsável quando o vestígio envolver a linguagem. Você talvez também já tenha ouvido falar da série Suits, sobre advogados e tribunais. Em um de seus episódios, mostra-se uma acusação de plágio de um perfume, mas e se o plágio fosse de um livro? Quem melhor poderia ajudar os advogados do que um especialista em linguagem?

Ora, se cientistas da área da biologia são os responsáveis por analisar vestígios envolvendo, por exemplo, sangue, DNA ou saliva, faz todo o sentido que um cientista da língua(gem) – ou seja, um linguista – seja o responsável quando o vestígio envolver a linguagem.

O trabalho de linguistas como peritos, assistentes ou consultores em questões jurídicas tem crescido nas últimas décadas. Tais profissionais são os “linguistas forenses”, que podem ser independentes ou vinculados ao Estado. É verdade que, no Brasil, a atuação é ainda incipiente e a área pouco divulgada, mas recentes estudos de linguistas brasileiros começam a despontar e prometem trazer à luz esse campo de trabalho.

A essa altura você já deve estar se perguntando “mas o que, de fato, faz um linguista forense”? Essa pergunta pode ser melhor respondida através de exemplos. Vamos a dois deles.

O primeiro é o caso da suspeita de suicídio de Michael Hunter, nos EUA, em 1992, relatado pela linguista C. Chaski. Hunter morreu devido a uma injeção que combinava alguns medicamentos. Seu colega de quarto, J. Mannino, foi quem avisou a polícia e lhe entregou disquetes com uma carta de suicídio supostamente escrita por Hunter. A polícia suspeitou que na verdade não se tratava de um suicídio e que a carta era forjada. Então, pediu a Chaski que comparasse a tal carta com outros documentos, alguns sabidamente escritos por Hunter, outros por Mannino, e outros por um terceiro colega de quarto. A análise linguística, que focalizou sintaxe e pontuação, mostrou que a carta provavelmente não tinha sido escrita por Hunter, mas por Mannino. Algum tempo depois, Mannino assumiu o crime e admitiu ter escrito a carta (em outros casos de identificação de autoria, linguistas trabalharam com elementos como escolha de palavras, temas preferidos, preferências de certas formas linguísticas em detrimento de outras, etc.).

O segundo caso é uma disputa entre marcas registradas. O que acontece se uma empresa diz ser dona de um elemento linguístico? Em 1987, a rede de hotéis Quality Inns criou uma marca de hotéis econômicos e a chamou de McSleep Inns, mas a iniciativa foi por água abaixo assim que anunciada porque o McDonalds alegou que o prefixo “Mc” não poderia ser usado pela rede, já que estava comumente associado a eles; diziam que a Quality Inns se beneficiaria da reputação construída pelo McDonalds junto ao grande público. Ora, “Mc” é um prefixo comumente presente em sobrenomes (por exemplo, McLarem, McConaughey) e a Quality Inns, depois de consultar um linguista, levou isso em conta na sua resposta aos reis do hambúrguer, sem obter sucesso, pois  o  McDonalds entrou na justiça para exigir em juízo o não emprego do “Mc”. Durante o julgamento, discutiram-se diversas questões de linguagem, como, por exemplo, se o prefixo era mais ou menos associado ao mercado alimentício, em que grau era associado necessariamente ao McDonalds, com que frequência aparecia no inglês à época, etc. Foram contratados linguistas pelas duas partes, cada um tentando auxiliar seus clientes por meio de análises de diferentes aspectos. O McDonalds alegava, entre outras coisas, que ele foi pioneiro em transferir o prefixo patronímico (que tem a ver com sobrenome) para outros tipos de palavras, tendo portanto o direito de usá-lo com exclusividade. A Quality Inns, por sua vez, mostrou que o “Mc” tinha se tornado um termo genérico (como “aspirina” ou “gilette”), entrando para o vocabulário do inglês e sendo empregado em  palavras que não tinham nenhuma relação com o McDonalds nem com comida.

Mas não apenas de perícia vive o linguista forense. O profissional também tem espaço como consultor ou oferecendo treinamento para agentes de justiça, como fazem T. Grant e N. MacLeod no Reino Unido, que treinam policiais para que se comuniquem, sob disfarce, com criminosos na internet (em casos de pedofilia, por exemplo: como um policial de, digamos, 40 anos, poderia “soar”, escrever como uma criança sem “dar bandeira”?).

Veja que, nesses casos, linguistas atuaram como peritos (mais precisamente como “expert witnesses”, em inglês). Mas não apenas de perícia vive o linguista forense. O profissional também tem espaço como consultor ou oferecendo treinamento para agentes de justiça, como fazem T. Grant e N. MacLeod no Reino Unido, que treinam policiais para que se comuniquem, sob disfarce, com criminosos na internet (em casos de pedofilia, por exemplo: como um policial de, digamos, 40 anos, poderia “soar”, escrever como uma criança sem “dar bandeira”?). Também, há linguistas forenses que podem nunca atuar em situações mais “práticas”, mas nos bastidores, desenvolvendo métodos de análise.

Além das perguntas que emergiram nos casos citados acima, outras, em outros tipos de casos, podem surgir, por exemplo:

  • Quem falou estas palavras nesta gravação? (trabalho para a fonética forense; fonética é a área da linguística que se preocupa com os sons das línguas humanas).
  • A sentença deste juiz está impregnada de racismo (ou machismo, ou homofobia, etc.)? (um trabalho para a área de análise do discurso).
  • Este falante não nativo realmente entendeu o que o delegado lhe perguntou? (um trabalho para especialistas em bilinguismo, ou para tradutores forenses).

Poderia arrolar muitas outras perguntas, mas creio que já deu para ter uma ideia das diversas possibilidades que se apresentam. Sem falar que linguistas forenses também podem atuar em casos de “Crimes de Linguagem” (crimes cometidos por meio da linguagem, como a injúria, a calúnia, a difamação, a extorsão, o suborno, o assédio, a ameaça, etc.).

Em suma, pode-se dizer que a Linguística Forense é a área em que se estudam/propõem aplicações práticas da Linguística na resolução de problemas relacionados à linguagem, que se apresentem no âmbito de investigações policiais ou processos judiciais. É um ótimo exemplo de aplicação da Linguística “no mundo real”.