O que é Análise do Discurso? Como pode ser usada? E o que a difere de uma análise gramatical?
Ao contrário da análise gramatical, que se concentra na estrutura das sentenças, a Análise do Discurso se concentra no uso amplo e geral da linguagem dentro e entre grupos específicos de pessoas.
Ao contrário da análise gramatical, que se concentra na estrutura das sentenças, a Análise do Discurso se concentra no uso amplo e geral da linguagem dentro e entre grupos específicos de pessoas. Em análises textuais, os gramáticos percebem a língua pela descrição da sua organização e muitas vezes examinam textos isoladamente em busca de elementos que contribuam com a análise (e.g. uso de palavras, escolhas estilísticas etc.). A Análise do Discurso, no entanto, considera as mais diferentes formas materiais significantes, além da noção de sujeito – não o sujeito da análise sintática, mas o ser que fala, no mundo (seu contexto social e cultural), interpolado por uma ideologia. Em outras palavras, a Análise do Discurso considera que não há neutralidade sequer no uso mais rotineiro da linguagem.
Mas isso não significa que devemos desconsiderar o sistema linguístico, os objetos simbólicos, a gramática – instrumento de descrição e sistematização das línguas. Muito pelo contrário. Tanto o sistema linguístico quanto o processo discursivo são constituintes de uma articulação entre a Linguística e processos ideológicos científicos. Apesar de serem conceitos distintos, eles são complementares, já que as leis internas que regem o sistema linguístico são a base comum para o processo discursivo. Porém, enquanto o sistema da língua é o mesmo para os mais diversos personagens, o discurso está inserido em um processo associado com a constituição dos sentidos.
Mas o que seria isso? As palavras podem mudar de sentido, dependendo de quem as emprega, da posição que essa pessoa ocupa, de onde e do momento em que as palavras são usadas etc. São estas circunstâncias sócio históricas que permitem que um determinado sentido seja construído. Há, na Análise do Discurso, um elemento fundamental que determina o que pode (ou não) ser dito em um certo contexto. Chamamos este elemento de formação discursiva. Esta noção tão importante nos ajuda a entender que os sentidos dentro dos discursos têm uma carga ideológica. Isto é, tudo que falamos ou escrevemos possui um traço ideológico que produz efeitos e muitas vezes nem percebemos. A Análise do Discurso trata dessa relação entre a linguagem e a ideologia.
Nesta filiação teórica, leva-se em conta a materialidade da linguagem, sua opacidade (não-transparência), que carrega consigo elementos de ordem ideológica, política e simbólica.
Até a década de 60, os estudos da língua eram dominados por abordagens que buscavam entender o conteúdo do texto. Mas, com a chegada dos estudos discursivos, as análises deixaram de ser apenas sobre formas de organização dos elementos que constituem um texto e passam a ser também sobre o funcionamento do texto, levando em consideração as circunstâncias em que algo foi dito/escrito, as condições sócio históricas e ideológicas que permitiram que aquilo fosse dito/escrito naquele momento e lugar, mas também o papel da memória, ou seja, o que sabemos, as nossas experiências passadas, o que já foi dito/escrito antes, em outros lugares, mas que se atualiza e torna possível todo discurso, sua compreensão e os seus efeitos. A partir de uma concepção de Análise de Discurso bastante difundida no Brasil – a europeia, sobretudo a francesa – busca-se dar conta de análises mais complexas da linguagem. Nesta filiação teórica, leva-se em conta a materialidade da linguagem, sua opacidade (não-transparência), que carrega consigo elementos de ordem ideológica, política e simbólica. A Análise do Discurso, portanto, articula aspectos linguísticos com aspectos sociais, mas não da mesma forma que faz a Sociolinguística (o comportamento linguístico em diferentes contextos) ou a Pragmática (uso linguístico nos atos da fala). Fundamentalmente, a Análise do Discurso propicia uma reflexão sobre a relação da ideologia com a língua.
A linguagem é estudada enquanto formação ideológica, cuja competência possibilita atualizações nas significações. Nessa perspectiva, a interpretação passa a ser um objeto de reflexão (ORLANDI, 2012), pois assim como o sentido, ela não se fecha, não é evidente – embora pareça ser. E isto é particularmente importante não só para os estudiosos da linguagem, mas das ciências em geral, pois nas rotinas de nossas vidas estamos interpretando o tempo todo. Nestes cenários cotidianos de interpretações e na nossa ininterrupta relação com o simbólico, cabe à Análise do Discurso indagar, averiguar.
Peguemos um bordão político da década de 20 do então presidente da república Washington Luís: “Governar é abrir estradas”. Este bordão, que se tornou o lema da sua campanha presidencial e perdurou durante seu governo, trazia em si uma memória discursiva: o surgimento da indústria automotiva no Brasil, sinônimo de avanço e modernidade, ao passo que a hegemonia agrícola no país se dissolvia. A construção de estradas e a melhoria da mobilidade urbana se tornavam as principais políticas de um Estado moderno.
Nestes cenários cotidianos de interpretações e na nossa ininterrupta relação com o simbólico, cabe à Análise do Discurso indagar, averiguar.
A leitura que se pode fazer do slogan, no entanto, vai além do que se diz, do que óbvio, evidente ou superficial. Temos aqui um exemplo simples de condições sócio históricas e ideológicas que incluem o sujeito (o Estado, representado por Washington Luís), a situação (o contexto sócio histórico, político, ideológico do país) e a memória discursiva, o interdiscurso, que é um saber pré-construído que possibilita outros dizeres e outros sentidos.
A Análise do Discurso busca compreender como um objeto simbólico (texto, foto, pintura, escultura, etc.) produz sentidos e como este objeto está cheio de significância. Nesta busca, a análise traz à tona o funcionamento da linguagem, no qual o sujeito se constitui pela interpretação que faz. Ao interpretar algo, o sujeito se submete à ideologia e à ilusão de que tudo é transparente, literal, evidente, e de que te temos acesso direto ao sentido completo daquilo que está sendo enunciado. Cabe ao analista de discurso, portanto, compreender como opera o gesto de interpretação do sujeito, os mecanismos de interpretação (e.g. como são regulados, o que se interpreta, de que forma, por quem etc.) e mostrar seus efeitos de sentido.
Percebemos então a importância do sentido para a Análise do Discurso. Na verdade, dentro da perspectiva discursiva, é o sentido que fundamenta a linguagem que, por sua vez, só faz sentido porque está inscrita (a linguagem) na história (historicidade). É importante lembrar que, neste olhar, a história não é meramente uma evolução, uma cronologia. São práticas sociais organizadas a partir das relações com o poder. Em outras palavras, ao analista não basta apenas rastrear dados históricos em um texto, mas sim entender de que forma este texto produz sentido levando em conta essas relações com o poder.
Para exemplificar esta relação da linguagem com a história e a produção de sentidos e seus deslocamentos em diferentes épocas, basta pensarmos na leitura que você faz de um livro hoje e uma leitura do mesmo livro feita daqui a 20 anos, por exemplo. Esta leitura certamente não será a mesma, pois as condições de leitura não serão as mesmas e você, sujeito-leitor, certamente terá uma diferente relação com a discursividade e com os gestos de interpretação operando nos diferentes momentos. No final das contas, o sujeito-leitor é responsável pelo sentido que constrói ao ler. Por isso é tão comum ouvir de alguém, ao descrever sua experiência com um livro/filme que leu/assistiu mais de uma vez: “Na primeira vez que eu li/assisti eu não gostei tanto” ou “gostei mais”. A obra é a mesma! Mas não se pode dizer que o sujeito (e a sua interpretação) também são. O que houve aí foi um deslocamento na produção de sentidos.
[D]entro da perspectiva discursiva, é o sentido que fundamenta a linguagem que, por sua vez, só faz sentido porque está inscrita (a linguagem) na história (historicidade).
Voltemos ao lema da campanha de Washington Luís (“Governar é abrir estradas”). Vamos encontrar outras maneiras de leitura, atualizadas, posicionando este enunciado em relação ao que foi dito em um outro momento, em um outro lugar etc. Em outras palavras, o efeito de sentidos desse slogan possivelmente seria outro se dito nos dias de hoje. Uma análise desse slogan iria articular, portanto, o linguístico ao sócio histórico e ao ideológico, ou seja, aos modos de produção social.
É importante ressaltar, ainda usando o slogan como exemplo, que muito embora este enunciado tenha sido amplamente usado no país afora em determinada situação discursiva e, portanto, significado algo ali e então, os sentidos se dão em outros dizeres, outras vozes, que foram historicidade em um outro momento – sempre marcada pela ideologia e relações de poder. Sendo assim, o slogan não é propriedade do governo Washington Luís e muito menos tem o governo o controle sobre os diversos sentidos que irão se constituir através do que foi dito ali.
Alguém poderia interpretar, por exemplo, que “Governar é abrir estradas” remete a experiências anteriores ou políticas passadas de mobilidade, em que pouco se fazia para melhorar ou construir estradas; ou seja, não havia governo ou era insatisfatório. Se governar é abrir estradas, é isso que distingue o governo de Washington Luís dos demais. As experiências ruins passadas eram resgatadas para o presente com o slogan através de toda a sua carga de memória discursiva. Da mesma forma, um outro sujeito-leitor poderia interpretar “abrir estradas” como uma metáfora de um futuro promissor: o de construir caminhos para o futuro, entre outras possíveis interpretações.
Notamos que os estudos do discurso se encontram entre a Linguística e as Ciências Sociais. Porém, enquanto muitos estudos linguísticos tendem a excluir o contexto sócio histórico e ideológico da mesma forma que muitos estudos das Ciências Sociais tendem a excluir a Linguística, é através do discurso que se encontra uma mediação na relação linguagem/mundo. O discurso é uma das instâncias materiais dessa relação e a linguagem enquanto discurso é um componente essencial entre o homem e sua realidade.
Para saber mais:
BRANDÃO, H.H.N. Introdução à Análise do Discurso. 3ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.
ORLANDI, E.P. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. 4ª ed. Campinas, SP: Pontes Editores. 2012.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Puccinelli Orlandi et al. 5ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014 (título original: Les vérites de la Palice, 1975).