Do corpo para a mente: o caminho do concreto ao abstrato na linguagem

As pessoas não saem por aí criando termos novos para cada ideia ou sentimento que querem expressar, na maioria das vezes, elas “reciclam” termos já disponíveis e de uso geral para novas necessidades comunicativas.

Mariangela Rios de Oliveira · Mariangela Rios de Oliveira é doutora em Língua Portuguesa, ela estuda a ordenação e as classes de palavra do português, analisando os usos linguísticos atuais e sua trajetória ao longo do tempo.

No mundo atual, todos nós certamente ouvimos falar de “reciclagem”, por conta das preocupações com a melhoria das condições de nossa vida cotidiana no meio ambiente. Nesse contexto de uso, “reciclar” significa transformar ou adaptar algo já usado para ganhar uma nova utilização. Pois bem, na linguagem ocorre o mesmo, quer dizer, tomamos palavras já existentes na língua, com seu sentido básico e original, para usá-las com novos sentidos e em outros contextos. O que estamos dizendo é que as pessoas não saem por aí criando termos novos para cada ideia ou sentimento que querem expressar, na maioria das vezes, elas “reciclam” termos já disponíveis e de uso geral para novas necessidades comunicativas.

E qual é o caminho dessa atribuição de novos sentidos? O percurso parte do que é mais concreto para o que é mais abstrato, do que é mais objetivo para o que é mais subjetivo. E o que temos de mais concreto e objetivo? O nosso corpo, o espaço que ocupamos no mundo. Assim, é muito comum, nas diversas línguas, o recrutamento de nomes relativos às partes do corpo humano para a referência a objetos, atividades, locais, qualidades, marcos temporais e mesmo relações textuais. Por isso, em português, por exemplo, a partir do nosso braço, podemos falar: a) de parte de objeto, como o braço da cadeira; b) de atividade, como abraçar; c) de local, como o braço do rio; d) de qualidade, como braço direito.

As pessoas não saem por aí criando termos novos para cada ideia ou sentimento que querem expressar, na maioria das vezes, elas “reciclam” termos já disponíveis e de uso geral para novas necessidades comunicativas.

Esse processo de aproveitamento de braço não é aleatório, as pessoas usam essa parte do corpo por conta de alguns traços de seu sentido básico que são mantidos nos novos sentidos elaborados. Assim, o formato do braço (em braço da cadeira, braço do rio) e o sentido de proteção (em abraçar, braço direito) garantem que todas as pessoas, na primeira vez que ficam diante desses novos termos, possam compreender o que significam e possam usá-los regularmente na sua comunicação cotidiana, fixando cada vez mais esses modos de dizer.

O processo que nos permite transportar traços de sentido básico de uma palavra para a expressão de sentido abstrato e mais subjetivo é a metáfora. Dizemos então que não só os poetas, em suas obras literárias, se valem do pensamento metafórico; nós, os simples mortais, também recorremos continuamente a esse processo, só que de um modo bem diferente. Enquanto os artistas usam as chamadas metáforas inaugurais, singulares em sua realização, as pessoas comuns se utilizam das metáforas convencionais e sistemáticas do dia a dia. Quem não associa logo Carlos Drummond de Andrade ao verso No meio do caminho tinha uma pedra? E por que isso acontece? Porque ele elaborou criativamente essa relação associativa, numa relação singular. Por outro lado, já nem percebemos que expressões que usamos todo tempo também têm base metafórica, como chutar o balde, quebrar o galho, cair a ficha e tantas outras. Essa falta de percepção acontece porque essas expressões se convencionalizaram, se fixaram na mente e na língua; as pessoas nem pensam acerca de onde e de como se formaram. Por isso dizemos que fazemos melhor e mais sistematicamente aquilo que fazemos sempre, o que inclui todas as atividades cotidianas, inclusive as verbais.

[É] muito comum, nas diversas línguas, o recrutamento de nomes relativos às partes do corpo humano para a referência a objetos, atividades, locais, qualidades, marcos temporais e mesmo relações textuais

Até aqui, estamos falando de associações metafóricas que dão origem a novos termos lexicais, ou seja, a palavras de conteúdo mais pleno, como substantivos, adjetivos e verbos, mas o percurso do concreto ao abstrato na língua é amplo e atinge também classes gramaticais mais fechadas. É sobre esse caminho que passamos a falar agora; para tanto, selecionamos como exemplo o que ocorre com os pronomes locativos e na nossa língua. Como nos ensina a tradição gramatical, esses dois elementos são classificados como advérbios de lugar, uma categoria que faz referência ao espaço mais distante de quem diz/escreve e mais próximo de quem ouve/lê. Mas a referência espacial desses termos guarda uma diferença interessante: enquanto o pronome se refere a um lugar mais específico, a um ponto no espaço, o pronome não faz esse apontamento definido, indicando, por outro lado, um lugar vago e impreciso. Essa distinção faz muita diferença quando as pessoas recrutam ambos os pronomes para associações metafóricas na língua.

No caso do pronome , é usado de modo mais abstrato e subjetivo para estabelecer relações de conexão, como quando dizemos Ele estudou muito para a prova, aí passou no concurso. Observamos que nesse exemplo o pronome não mais se refere a um local, mas estabelece uma relação de causa e consequência entre a primeira declaração, Ele estudou muito para a prova, e a segunda declaração, passou no concurso. Nesse caso, o que as pessoas fizeram foi reutilizar um advérbio da língua, de sentido concreto, para atuar como conector, elemento de sentido abstrato e função textual, a partir do traço de apontamento para um lugar determinado que esse pronome tem. Esse sentido específico de também faz com que seja associado a outras expressões de função conectiva do português, como daí que, aí está, aí vai, aí sim, entre outras. Em tais arranjos, observamos maior abstração e subjetividade no uso de aí. Não chegamos a perceber o percurso metafórico que levou à formação dessas convenções. O que fazemos simplesmente é usá-las.

[F]azemos melhor e mais sistematicamente aquilo que fazemos sempre, o que inclui todas as atividades cotidianas, inclusive as verbais.

Com relação ao pronome , sua propriedade de apontamento para espaço vago e impreciso concorre para que seja selecionado na formação de expressões mais gramaticais na língua. O sentido dessas expressões incorpora justamente a vagueza e a imprecisão do pronome referido. Em português, um desses arranjos é uma expressão de sentido intensificador estruturada por para lá de, usada em frases do tipo A festa foi para lá de animada. Em formações assim convencionalizadas, o que queremos dizer é que a festa estava mais do que muito animada ou animadíssima.

Mas, se já dispomos desses dois modos de dizer, por que ainda continuamos a formar e fixar novas combinações na língua? A resposta é que, tal como na vida cotidiana, o que usamos muito se desgasta muito também, se desbota, perde o viço inicial, assim, precisamos reciclar o antigo, reutilizar o velho, dando-lhe novo aproveitamento. Então, no uso linguístico, ao lado de muito animada e animadíssima, as pessoas convencionalizam para lá de animada, que intensifica mais ainda a animação, uma vez que o estado de animado é colocado num espaço mais distante e difuso. Esse efeito de sentido intensificador de um estado também ocorre, por exemplo, quando dizemos que alguém ou alguma coisa está para lá de Bagdá ou para lá de Marrakech. Nesses casos, as cidades árabes referidas, tal como o locativo , não fazem alusão a um espaço geográfico, mas sim apontam para algo fora do convencional, para além da normalidade.

Outra reutilização do elemento muito produtiva em usos mais informais do português está na formação de marcadores discursivos, que são expressões que atuam no nível do texto, segmentando suas partes, abrindo e fechando declarações, entre outras funções. Entre os marcadores da nossa língua estruturados pelo locativo lá, podemos citar vá lá, sei lá, veja lá, olha lá, alto lá, calma lá, quero lá e muitos outros. O sentido vago e impreciso do locativo concorre para a abstração e a subjetividade que marcam essas formações. O mais impressionante é que os falantes fazem tudo isso, criando novos usos no léxico e na gramática, sem perceberem! É o trabalho do linguista, que estuda como as línguas vão mudando e o que motiva essas mudanças, que descortina a maneira como uma massa de falantes vai reciclando a sua língua.