Racismo e linguagem: o caso do ministro da educação que simulou a fala dos chineses

O discurso racista tenta, a todo o tempo, esconder-se.

Hélio de Oliveira · Sou mestre e doutor em Linguística pela Unicamp, na área de estudos do texto e do discurso, especialista em Gestão da educação a distância (EAD), professor nos cursos de Letras e de Pedagogia na UNIFEOB, professor-colaborador no curso de especialização em Gestão Pública na UNIFESP e atuo como pesquisador associado ao grupo Fórmulas e Estereótipos: Teoria e Análise (FEsTA), sediado no Instituto de Estudos da Linguagem, na UNICAMP. Interesso-me por questões relativas à Análise do Discurso, principalmente o estudo de discursos de ódio, discursos racistas e intolerantes e de fórmulas discursivas.

Abraham Weintraub ocupou, por mais de um ano, a cadeira de Ministro da Educação e está sendo acusado de praticar racismo contra os chineses. O fato pode parecer inusitado para alguns, considerando o contexto de um país como o Brasil, outrora conhecido como “paraíso da miscigenação”, construído por várias etnias, por gerações de imigrantes estrangeiros, inclusive orientais. Acreditar que não existe racismo no Brasil faz parte do chamado “mito da igualdade racial”, desmascarado por muitos sociólogos e antropólogos, a despeito da crença continuar aparecendo em variados textos.

A relação entre racismo e linguagem é tema frequente no campo dos estudos linguísticos – adiante, serei mais específico quanto às áreas da linguística mobilizadas neste texto. Por ora, gostaria apenas de introduzir alguns conceitos que, embora não sejam aprofundados, servem de pano de fundo para as considerações em questão. Mantenhamos em mente que o conceito de racismo implica formas de superioridade de um grupo sobre outros e, de acordo com Grada Kilomba (2008), envolve sempre a construção da diferença, calcada na combinação de preconceitos e estereótipos. Por sua vez, a linguagem participa nesse processo de construção, na medida em que as palavras/enunciados materializam (re-produzem, re-criam) as crenças preconceituosas e estereotipadas, conforme observa Van Dijk (2015).

Acreditar que não existe racismo no Brasil faz parte do chamado “mito da igualdade racial”, desmascarado por muitos sociólogos e antropólogos, a despeito da crença continuar aparecendo em variados textos.

Esses conceitos devem ficar mais claros com o exemplo. Vamos ao ocorrido.

No início de abril deste ano, em seu perfil do Twitter com quase um milhão de seguidores, Abraham Weintraub publicou um breve texto, acompanhado de uma ilustração do quadrinista Maurício de Souza em que figuram o garoto Cebolinha, um coleguinha de traços orientais e outras crianças, todos caminhando alegremente sobre a muralha da China. Não se tratava de algum projeto educativo voltado para a educação infantil, mas de uma acusação velada contra a China. Supostamente, o país estaria tirando proveito da pandemia de covid-19 para fortalecer-se economicamente. Ao redigir seu texto, o ex-professor da Unifesp substituiu a letra “R” pela letra “L” em várias palavras, fazendo alusão à fala do Cebolinha, conhecido por manifestar em sua fala uma troca de ordem fonético-fonológica, comumente atribuída aos chineses, em que o som representado pela letra “R” (como em “presidente” e “vírus”) é trocado pelo “L” (resultando em “plesidente” e “vílus”).

O texto escrito pelo ex-Ministro diz: “Geopoliticamente, quem podeLá saiL foLtalecido, em teLmos Lelativos, dessa cLise mundial? PodeLia seL o Cebolinha? Quem são os aliados no BLasil do plano infalível do Cebolinha paLa dominaL o mundo? SeLia o Cascão ou há mais amiguinhos?”

Antes de considerar possíveis implicações racistas, algumas observações de cunho textual e argumentativo, ainda que em linhas gerais, são necessárias:

(i) Há uma incorreção nessa representação do que seria a fala do Cebolinha, da forma como foi feita pelo sr. Weintraub: a já mencionada troca do “R” pelo “L” nunca acontece quando o “R” ocorre em final de palavra (por exemplo, “qualquer” e “amor”). Com efeito, se essa troca também se desse nessa situação, a pronúncia dessas palavras se distanciaria demais da pronúncia original uma vez que, no português falado no Brasil, o “L” no final de palavra se pronuncia como um “U”. Assim, as palavras grafadas pelo ex-ministro “saiL”, “seL”, “dominaL” se pronunciariam “saiu”, “seu” e “dominau”, respectivamente, o que não ocorre nem na fala do Cebolinha nem na versão estereotipada da fala dos chineses).  (ii) Há falta de clareza na postagem, composta apenas de frases interrogativas, ao mencionar personagens da turma da Mônica sem identificar a quem eles corresponderiam, talvez a países supostamente parceiros da China em algum tipo de conspiração política, tudo bastante opaco.  (iii) Há contradição (ou uma espécie de autossabotagem) no fato de um membro do alto escalão do Governo Federal escrever um texto atacando o principal parceiro econômico de seu país, prejudicando relações diplomáticas (o embaixador chinês no Brasil manifestou oficialmente sua indignação quanto ao texto e considerou a postagem uma ofensa);  (iv) Houve um ato de ilegalidade ao se utilizar material com direito autoral sem a autorização expressa do autor da História em Quadrinhos (segundo reportagem do Jornal Extra, em 06/04/2020, “Maurício de Sousa Produções repudia uso de gibi da Turma da Mônica em post de Weintraub”).

Para além desses aspectos, volto à questão central de meu texto para apresentar, na perspectiva dos estudos linguísticos, duas razões que podem ter levado muitas pessoas a interpretarem a postagem como uma ocorrência de discurso racista, muito embora haja quem entenda o ocorrido como “apenas” uma peça humorística.

Esses últimos, que leem a postagem no viés do humor, consideram esse caráter uma suposta razão para não levar o texto a sério, pois, segundo eles, seria um exemplo do “estilo jocoso” de Weintraub – como se o cargo de Ministro e o tema da postagem não exigissem seriedade absoluta. A esse respeito, um aspecto deve ficar muito claro: o fato de haver quem consiga rir de postagens desse tipo não significa que material humorístico não seja racista (ou sexista, homofóbico etc.). Sobre as razões que levam os indivíduos a se divertirem com a humilhação alheia, há vasta pesquisa disponível, por exemplo, a obra “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (FREUD, 1985), mas não me deterei nesse ponto. O que pretendo mostrar é como a representação estereotipada da fala de um grupo étnico pode sim ser vista como racismo, concentrando-me em duas principais razões, comprovadas por estudos linguístico-discursivos.

Da mesma forma como a pele negra não é melhor nem pior que a branca ou a amarela, nem os cabelos ruivos sejam mais “engraçados” que os loiros ou os brancos, a pronúncia de uma comunidade de falantes é simplesmente uma característica identitária daquele grupo étnico. Não faz sentido rir de traços naturais, a não ser que o divertimento venha justamente do ato de ridicularizar alguém.

A primeira se apoia na Sociolinguística, área de conhecimento que pesquisa, entre outros tópicos, a variação (sociocultural, histórica, geográfica …) de uma determinada língua. Para Sírio Possenti (2001), o sotaque é a cor da língua, ou seja, a forma como alguém pronuncia as palavras é tão intrínseca à identidade como a cor da pele. Algumas línguas orientais não têm correspondente à emissão fonética da letra “R” e é por essa simples razão que seus falantes têm dificuldade em reproduzir esse som, quando tentam falar outras línguas, assim como os brasileiros penam para falar palavras com “TH”, em inglês. Um exemplo familiar desse tipo são as diferentes pronúncias do “R” em português brasileiro. Ao ouvirmos alguém dizer “porta”, é possível identificar a origem do falante como carioca, gaúcho ou do interior de São Paulo, para citar as três pronúncias mais conhecidas do “R” nacional. Uma pronúncia não é melhor ou pior que a outra, nem mais correta ou incorreta. Trata-se de um fato linguístico, de uma questão material, uma propriedade humana inquestionável. O modo como se entende esse fenômeno, isso sim está aberto a interpretações e, inclusive, revela traços significativos da personalidade do interpretante. Da mesma forma como a pele negra não é melhor nem pior que a branca ou a amarela, nem os cabelos ruivos sejam mais “engraçados” que os loiros ou os brancos, a pronúncia de uma comunidade de falantes é simplesmente uma característica identitária daquele grupo étnico. Não faz sentido rir de traços naturais, a não ser que o divertimento venha justamente do ato de ridicularizar alguém. Nesse último caso, achar muito engraçado imitar o modo de falar dos chineses, a ponto de simular grotescamente a fala deles em uma rede social, diz mais sobre a natureza de quem faz um post assim do que sobre as pessoas alvo da postagem.

A segunda razão vem da Análise do Discurso, outro campo da linguística, especificamente de um conceito proposto por Dominique Maingueneau para caracterizar os discursos que não podem se revelar abertamente no espaço público, a saber, a atopia discursiva (MAINGUENEAU, 2015). Na palavra “atopia”, o prefixo “a” denota “ausência”, enquanto o termo grego “topos” corresponde a “lugar”, então, a atopia discursiva identifica os discursos que não têm um “lugar” na sociedade, ou seja, não podem circular livremente, impunemente, pois sofrem sanções e interdições diversas. Um exemplo de discurso atópico é o discurso racista. Sobre essa questão, Oliveira (2015) observa que uma das marcas identificadoras da atopia do discurso racista é camuflar-se como um outro discurso, por exemplo, o humorístico. Depois de causar polêmica ao dizer que as médicas cubanas tinham “cara de empregada doméstica”, a autora desse enunciado disse que foi “brincadeira, e não racismo”. Travestir-se com um verniz humorístico é justamente o que caracteriza o discurso racista em algumas situações, porque o sujeito racista não se vê enquanto tal, conforme os dados apresentados em Oliveira (2019). Quando o autor de uma declaração racista é surpreendido em um ato de intolerância inaceitável em nossa sociedade, ele pode ser autuado por crime de injúria racial, o que lhe dá um motivo a mais para tentar dissimular seu racismo, acreditando que pode diluí-lo no campo do humor. O discurso racista tenta, a todo o tempo, esconder-se. Além de tentativa de autoproteção legal, essa dissimulação discursiva pode ser comparada com o que faria uma criança ao se dar conta de que quebrou o vaso da sala. Ela tenta esconder os detritos, eventualmente embaixo do tapete, na esperança de que ninguém perceba seu delito. Talvez seja engraçado observar esse comportamento infantil entre as criancinhas, mas certamente não nos mais altos cargos da república.

No fim das contas, aproveitando a analogia com crianças, elas acabam amadurecendo e aprendendo que, muitas vezes, as ações praticadas logo após um determinado ato vergonhoso, na tentativa de escondê-lo, acabam por evidenciá-lo ainda mais. Além disso, com a ação de tentar dissimular seu pequeno delito, a criança inconscientemente confessa sua culpa. 

Quando o autor de uma declaração racista é surpreendido em um ato de intolerância inaceitável em nossa sociedade, ele pode ser autuado por crime de injúria racial, o que lhe dá um motivo a mais para tentar dissimular seu racismo, acreditando que pode diluí-lo no campo do humor. O discurso racista tenta, a todo o tempo, esconder-se.

Um último fato: a postagem sobre os chineses, pouco tempo após ser publicada, foi apagada da rede social por seu autor, muito embora hoje em dia até uma criança saiba que a internet é bem diferente do tapete de sua casa e, na web, nada fica realmente oculto.

Para saber mais

FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, [1905] 1980.

KILOMBA, G. Plantation Memories: Episodes of everyday racism. Münster: Unrast, 2008.

MAINGUENEAU, D. Discurso e análise do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

OLIVEIRA, H. Indícios de atopia discursiva no funcionamento do discurso racista. Revista da ABRALIN, v.14, n.3, p. 371-387, dez. 2015.

OLIVEIRA, H. O ethos atópico. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v.61, p. 1-17, jun. 2019.

POSSENTI, S. A cor da língua e outras croniquinhas de linguista. Campinas: Mercado de Letras, 2001.

VAN DIJK, T. Discurso das elites e racismo institucional. In: LARA & LAMBERTI (org) Discurso e desigualdade social. São Paulo, Contexto, 2015, pp. 31-48.