Música pode ser um bom objeto de pesquisa linguístico e discursivo?

O analista do discurso pode escolher as músicas como seu objeto de pesquisa

Shara L. C. Lopes · Shara L. C. Lopes é linguista e analista do discurso. Atualmente pesquisa a construção e o funcionamento do discurso humorístico nordestino nas redes sociais. É professora de Língua Portuguesa do Instituto Federal do Piauí.

A música certamente figura como uma das artes mais popular. E não sem motivos. Há indícios de que ela era produzida já na pré-história e sua evolução pode coincidir inclusive com a história do desenvolvimento cultural e cognitivo do homem. A música geralmente apresenta letra, melodia e arranjo e pode ser encontrada nos mais diversos contextos. Como uma linguagem que em geral envolve textos verbais, é um material de pesquisa interessante tanto para a Linguística quanto para a Análise do Discurso.

Os posicionamentos discursivos podem ser exemplificados da seguinte forma: no discurso literário, cada escola é encarada como um posicionamento (modernista, realista, barroco…), enquanto no discurso político, cada movimento pode ser entendido como um posicionamento (esquerda, direita, centro, liberal, marxista, anarquista…).

Inicialmente, nos anos de 1960, a Análise do Discurso (AD), campo de estudos que analisa discursos a partir, sobretudo, de uma proposta teórica que une noções da Psicanálise, da Linguística e da História, elegia principalmente discursos políticos como seu objeto de análise. Mas, nas últimas décadas, outros tipos de discurso também têm sido acolhidos pelo campo, como: o jornalístico, o humorístico, o científico, o escolar, o midiático etc. O analista do discurso, cientista que trabalha com os pressupostos da AD, pode escolher, nesse sentido, as músicas (em toda a sua totalidade material com sentido: letra, melodia, arranjo…) como seu objeto de pesquisa. Nelson Costa, um pesquisador cearense, por exemplo, decidiu analisar esse tipo discursivo, e o nomeou de literomusical.

Análise de discurso literomusical

Costa (2012) trabalhou especialmente com a música popular brasileira. Ele analisou os posicionamentos discursivos, isto é, as adesões a determinadas identidades enunciativas. Na sua análise, as identidades enunciativas têm a ver com a origem ou estilo da(do) artista ou banda, por exemplo: o pessoal do Ceará reúne nomes como Fagner, Ednardo e Belchior, enquanto na Tropicália encontramos músicas de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, e Os mutantes. Já os posicionamentos discursivos podem ser exemplificados da seguinte forma: no discurso literário, cada escola é encarada como um posicionamento (modernista, realista, barroco…), enquanto no discurso político, cada movimento pode ser entendido como um posicionamento (esquerda, direita, centro, liberal, marxista, anarquista…). Na análise de Costa, a bossa nova, o forró, o samba e a MPB, por exemplo, são encarados como posicionamentos.

A principal tese desse autor é a de que a música popular brasileira é um discurso constituinte. Ou seja, o autor defende que a música popular brasileira é um discurso que funciona validando outros discursos e se validando ao mesmo tempo, assim como ocorre com o discurso científico e o religioso. Ambos se legitimam e legitimam outros discursos. Por exemplo, uma matéria de jornal (discurso jornalístico) geralmente cita pesquisadores (discurso científico) ou especialistas na área tópico da matéria a fim ter sua validade garantida. Já um artigo científico geralmente cita outros trabalhos também científicos para garantir sua validação. No caso da música popular brasileira, algumas músicas ou artistas são mencionados de forma elogiosa. Por exemplo, na canção Rita, de Chico Buarque, o autor remonta a outro grande representante, Noel Rosa.

Um exemplo de análise: o discurso religioso em canções de Luiz Gonzaga

Seguindo a proposta de Costa, de 2015 a 2017, produzi uma pesquisa que analisava o discurso literomusical a partir de algumas canções interpretadas por Luiz Gonzaga, o rei do baião. Estabeleci um dos objetivos a partir do conceito de cenas da enunciação, uma noção proposta pelo pesquisador francês Maingueneau (2008) que se refere a uma metáfora teatral para lembrar que os enunciados (produtos do ato da enunciação, que por sua vez é o funcionamento da língua por um ato individual) ocorrem situados espacial e temporalmente e por meio da voz de um locutor. Procurei compreender como algumas cenas enunciativas especiais se estabeleciam por meio de relações entre o discurso religioso e o discurso literomusical.

Para além de analisar os recursos mais estritamente linguísticos, a Análise do Discurso recorre também a elementos socio-históricos que situam o discurso em questão.

Por exemplo, a canção Ave-Maria Sertaneja, interpretada por Luiz Gonzaga pela primeira vez em 1964, no álbum Triste Partida, é apresentada num ritmo de toada, e sua letra remonta à narrativa da rotina do sertanejo, que sempre às seis horas da tarde, hora do angelus, reza a ave-maria. O refrão da canção é apresentado através de uma cena encaixada de prece que ocorre através da retextualização (retomada de um texto já existente) de uma das mais famosas orações católicas: a ave-maria.

Para além de analisar os recursos mais estritamente linguísticos, a Análise do Discurso recorre também a elementos socio-históricos que situam o discurso em questão. Voltando ao exemplo da canção Ave-Maria Sertaneja, fatores como: a relação entre essa canção e o restante do repertório do álbum em que foi publicada; a arte da capa do álbum; a cadência melódica e os arranjos da canção e sua relação com a letra; o ethos, isto é, a imagem de si construída pelo enunciador no discurso (conceito extraído da retórica clássica), da personagem da cena enunciativa (se alegre, triste, suplicante, arrogante, irritado, confiável…); o posicionamento do intérprete em relação a outros cantores da época… são igualmente importantes no processo de análise discursiva.

Outras possibilidades de análise

Além disso, é possível que o analista do discurso analise as diversas relações entre os diferentes tipos de discursos. Por exemplo, se a relação entre o discurso científico e o discurso religioso é polêmica ou não num determinado texto, isto é, se questiona, critica ou reafirma. Para isso, ele pode considerar as determinações genéricas. Ou seja, os gêneros discursivos (classificação dos textos a partir de caraterísticas em comum como a estrutura de seus parágrafos ou o tipo de relação com outros textos) apresentam limitações aos textos. Por esse motivo, muito dificilmente serão encontrados artigos científicos escritos em linguagem coloquial e que se valham de informações não testadas e comprovadas ou, por outro lado, conversas entre amigos na rua em linguagem formal e se valendo de números oficiais e dados científicos para respaldar suas falas.

Um dos pontos mais interessantes na análise discursiva de canções é observar o funcionamento da multimodalidade (a reunião dos vários elementos distintos que estão envolvidos no discurso, como: melodia, arranjo, letra, imagem do encarte, performance vocal…) na produção e a reformulação de sentidos. Música é uma arte que apresenta aparato midiático complexo, com várias facetas envolvidas (sons de vários instrumentos e vozes arranjadas das mais variadas formas possíveis e podendo apresentar-se em diversas harmonias). Por esse motivo, ela gera uma gama de possibilidades de efeitos de sentido que podem servir a várias demandas: relaxamento, euforia, militância social etc.

Um dos pontos mais interessantes na análise discursiva de canções é observar o funcionamento da multimodalidade (a reunião dos vários elementos distintos que estão envolvidos no discurso, como: melodia, arranjo, letra, imagem do encarte, performance vocal…) na produção e a reformulação de sentidos

O discurso literomusical é, assim, uma possibilidade de objeto de pesquisa fértil para a Análise do Discurso, mas não só: também é um bom material para vários outros campos da linguística, uma vez que implica diretamente em material linguístico (as letras das canções).

Para saber mais:

COSTA, Nelson Barros da. Música popular brasileira, linguagem e sociedade: analisando o discurso literomusical brasileiro. Curitiba: Appris, 2012.

MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. Trad. Sírio Possenti, Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.