Tendências sonoras correntes no latim e no português

Conhecer como a língua mudou no passado nos ajuda a compreender a variação linguística no português

Antonio Carlos Silva de Carvalho e Marcelo Módolo · Antonio Carlos Silva de Carvalho é doutor em Filologia Românica pela USP e sua área de pesquisa trata de como as palavras mudaram do latim vulgar para as línguas neolatinas. Marcelo Módolo é professor da USP. É doutor em Filologia e Língua Portuguesa e sua pesquisa trata de como as palavras se combinam, a sintaxe.

A bela metáfora empregada pelo filólogo e linguista brasileiro Serafim da Silva Neto em sua História do latim vulgar descreve a língua falada como um rio e a língua escrita culta, burilada por escritores e registrada pelos gramáticos, como a justaposição de camadas de gelo em sua superfície. Vislumbrando essa metáfora, exploramos aqui certos fatos linguísticos que, correntes no latim, continuam seguindo seu curso também no português, como água que, ao sulcar as camadas do gelo, ajuda a moldar, particularizando, a paisagem.

Só uma mudança da paisagem

Evidentemente, as mudanças fonéticas (relativas ao material sonoro) e morfológicas (concernentes à forma) nas palavras ocorrem segundo as tendências de cada geração e só se cristalizam após a passagem de muito tempo, quando enfim o cotejo entre um estágio e outro da língua permite destacar semelhanças e diferenças por trás da nova roupagem da palavra, como “leer”, português arcaico, e “ler”, português moderno. Todavia, em meio a outras, uma lei tida pelos velhos gramáticos como “lei do menor esforço” e cuja atuação sobre os metaplasmos é inegável costuma sempre permear essas transformações; segundo ela, por razões como não monitoramento, tendemos a economizar esforço no ato da fala — é o que ocorre quando coloquialmente usamos “magina” (por “imagina”, subtraindo o “i” inicial) ou “pire” (por “pires”, eliminando o “s” final), ambos exemplos de metaplasmos. Mas, o que seriam esses metaplasmos?

A bela metáfora empregada pelo filólogo e linguista brasileiro Serafim da Silva Neto em sua História do latim vulgar descreve a língua falada como um rio e a língua escrita culta, burilada por escritores e registrada pelos gramáticos, como a justaposição de camadas de gelo em sua superfície. Vislumbrando essa metáfora, exploramos aqui certos fatos linguísticos que, correntes no latim, continuam seguindo seu curso também no português, como água que, ao sulcar as camadas do gelo, ajuda a moldar, particularizando, a paisagem.

Metaplasmos, na tradição greco-latina, indicavam as formas diversas — uma variante em face de uma forma básica — dos vocábulos em um dado estado da língua, como “bicicleta” por[1] “bicicreta”, “voar” por “avoar”, “abóbora” por “bobra” e “vidro” por “vrido”. De natureza sincrônica, estática, isto é, considerando os fatos da língua num dado momento de sua história, esse conceito cedeu lugar a um de natureza diacrônica, mas na essência dinâmico, que aborda as transformações da língua em sua evolução, de geração para geração — no tocante ao português, do latim vulgar aos dias atuais —, considerando aspectos fonéticos de permuta, aumento, subtração ou transposição de partes da palavra.

Pensando exclusivamente no português, os metaplasmos permitem, por exemplo, discernir se os vocábulos são: i) populares, ou seja, os que constituem o léxico fundamental da língua, como olho (do latim oculus) e chão (planu) — tendo sofrido as mudanças fonéticas regulares do português, ou seja, a ação de certas leis de natureza sonora próprias de uma determinada época ou, mesmo, constantes da língua, como a tendência à sonorização —, apresentando-se muito modificados em face do termo original; ii) semieruditos, aqueles vocábulos introduzidos entre nós em um tempo posterior (por volta do século XV) por intermédio de meios sociais cultos versados na língua do Lácio, como sino (do latim signum) e tábua (tabula) — os quais não se submeteram à ação do mesmo conjunto de mudanças fonéticas que incidiu sobre o grupo anterior, sofrendo menos alterações; e iii) eruditos, vocábulos cuja introdução na língua portuguesa foi tardia e se deu por pessoas com bom conhecimento de latim, como óculo (oculus) e plano (planu) — não revelam mudanças fonéticas em face da forma original, salvo uma ou outra adaptação ao sistema atual da língua.

“Metaplasmos, na tradição greco-latina, indicavam as formas diversas — uma variante em face de uma forma básica — dos vocábulos em um dado estado da língua, como “bicicleta” por “bicicreta”, “voar” por “avoar”, “abóbora” por “bobra” e “vidro” por “vrido”.

Não raro, a depender da incidência das mudanças fonéticas a que são submetidos, vocábulos eruditos e vocábulos populares de uma origem em comum — os chamados cognatos ou, mesmo, divergentes — desenvolvem radicais tão diversos que apenas a gramática histórica possibilita o estabelecimento de seu parentesco, como literal, literatura, literário (radical erudito) e letra, letrado, letreiro (radical vernáculo, popular); ou balneário, balneável, balneoterapia (radical erudito) e banho, banheira, banhista (radical popular).

O rio continua a correr: a “lei do menor esforço”

O Appendix Probi, uma relação de 227 pares de palavras encontrada no final do livro Instituta Artium, de Valerius Probus (I d.C.), se constitui importante documento escrito sobre o latim falado, modalidade que é o ponto de partida das línguas românicas, como o francês, o espanhol, o romeno, o italiano etc.; de cunho didático, traz o registro culto ao lado do vulgar, apontando o modo correto da pronúncia, algo do tipo “assim, não assim” como avus non aus (avô). Nesse caso, em que ocorre a supressão de um fonema (unidade sonora articulada), notamos um fenômeno que remete à noção de economia linguística, muitas vezes chamada de lei da economia fonética, qual seja, a síncope da pós-tônica, muito comum no latim vulgar, devido ao caráter não monitorado, característico da língua falada informal. Indicando perda de fonema no interior da palavra, seja ele vocálico ou consonântico, a síncope da pós-tônica atuou sistematicamente na evolução do romanço lusitano, tanto que a passagem dos proparoxítonos latinos a paroxítonos em português se deu por força da síncope da vogal pós-tônica, como podemos verificar em auricula por auricla por orelha e masculu por masclu por macho.

Tendências antigas elucidando o presente

Processos idênticos ainda ocorrem hoje, como nos pares seguintes: árvore por arvre; chácara por chacra; xícara por xicra, demonstrando que “a lei do menor esforço”, embora não seja a única, continua a ser um norte na linguagem do povo, que conserva o núcleo semântico da palavra enquanto desfaz os proparoxítonos por meio da síncope da vogal pós-tônica. A propósito, nesses exemplos e em outros mais que trazemos, eventualmente metaplasmos de tipos diversos concorreram para as mudanças das palavras, mas nosso foco recai sobre determinados aspectos de certos metaplasmos de subtração, suficientes para assuntarmos sobre a tão falada “lei do menor esforço” ou “lei da preguiça”.

A síncope de consoante sonora intervocálica (sonoras são as consoantes que se articulam com vibração das cordas vocais, como d, b etc., em oposição às surdas, em cuja emissão não vibram as cordas vocais, como t, p) se mostrou outro importante expediente no processo de economia linguística, conforme atestam os pares mediu por meio e magis por mais. No português moderno falado, entretanto, é notável, por exemplo, a queda do d do grupo nd no gerúndio: pulando por pulano, torcendo por torceno, fugindo por fugino e do r do grupo dr na sílaba pós-tônica: madre por made, compadre por cumpadi (Cumpadi Washington que o diga!). Esses casos apresentam ligeira diferença na comparação com os anteriores, vez que a consoante eliminada não é intervocálica, mas é sonora e da sílaba postônica, portanto, temos uma espécie de cruzamento de duas tendências que convergem no sentido da economia.

Outra tendência atual que aponta nesse sentido e sobre a qual não encontramos denominação específica na literatura é a de suprimir sílaba semelhante de palavras diferentes em sequência, como nas frases “O Supremo rasgou a Constituição e, daqui para frente, não poderá…” (Fonte: Blog do Esmael) (para a frente); “Mais de 100 laboratórios de todo mundo lutam contra o tempo para produzir uma vacina contra o novo coronavírus.” (Fonte: Istoé Dinheiro) (todo o mundo); “Só 13 dos 513 deputados participaram de todas votações virtuais da Câmara” (Fonte: Brasil 200) (todas as votações); “TSE arquiva ação contra chapa Bolsonaro/Mourão…” (Fonte: Jornal Estado de Minas) (contra a chapa); ou nas expressões voltadas para propaganda “Dia Dia” (Dia a Dia); “Passo ponto” (Passo o ponto); “Fica Dica” (Fica a Dica). Nesses casos divisamos algo entre a “crase”, fusão de vogais iguais em juntura — ponto de contato entre duas formas dentro da palavra —, e a “haplologia sintática”, omissão de palavra igual ou parecida à outra com a qual está em contato (para saber mais sobre esse fenômeno linguístico, consulte o “Dicionário de linguística”, de Zélio dos Santos Jota), ambos considerados metaplasmos.

Palavras finais

Dessa forma, conhecer mecanismos atuantes que perpassam pela fonética e morfologia de uma perspectiva histórica nos ajuda a compreender a variação linguística no português e a observar que, independentemente da época, o rio continua a correr e a sulcar o gelo. A língua falada vai sempre sulcar a língua escrita, queiram os puristas ou não. É o correr do rio que dificilmente se consegue represar…


[1] A palavra “por” entre duas formas em variação remete sempre ao sentido de “realizado como/ no lugar de”.