Confie na sua intuição: como a intuição do falante fundamenta análises da língua

Quando se fala de estudos da língua, a intuição pode desempenhar um papel essencial.

Beatrice Monteiro · Beatrice Nascimento Monteiro é professora do curso de Letras Português da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e doutoranda em Linguística na Universidade de São Paulo (USP). Ela estuda a estrutura interna das palavras e como elas são formadas.

No dia a dia, quando se fala em intuição, geralmente pensamos em algo subjetivo, uma espécie de pressentimento que temos sobre algo ou alguém. Muita gente considera que a intuição seria um sexto sentido, que se manifesta como uma impressão súbita, repentina. Por ser considerada algo que não é racional, é comum que as pessoas entendam que a intuição não dialoga com a ciência, uma forma de conhecimento racionalizada e sistemática. Essa ideia, entretanto, não é válida para todos os estudos científicos. Quando se fala de estudos da língua, a intuição pode desempenhar um papel essencial.

Primeiramente, temos que esclarecer o que é intuição nos estudos linguísticos. Para isso, vamos observar a seguinte a frase:

(1) *Encontrei a meninos.

Essa frase é aceitável no Português? Se você for um falante nativo, isto é, se o Português foi a primeira língua que você aprendeu a falar, a sua resposta provavelmente será não. Nos estudos linguísticos, o uso do asterisco antes da sentença, como feito em (1), é um sinal de que ela não é aceitável naquela língua.

Quando se fala de estudos da língua, a intuição pode desempenhar um papel essencial.

Alguém poderia dizer: “Mas isso não é questão de intuição. Eu vi isso em Gramática na escola”. Então, vejamos outra frase:

(2) Encontrei as menina.

Essa frase é aceitável no português? A resposta agora é sim. Alguém poderia dizer: “Mas não segue a regra gramatical!”. Se você pensa na norma-padrão que é ensinada nas escolas, realmente não. Mas essa não só é uma construção possível e aceitável no português falado, como é muito utilizada em situações informais, tanto por falantes escolarizados quanto por falantes não escolarizados.

O que permite que alguém julgue a frase (1) como não aceitável e a frase (2) como aceitável é a intuição linguística, ou seja, a capacidade do falante nativo de perceber e avaliar uma determinada estrutura linguística como aceitável (ou não) em sua língua. A ideia de que os falantes são capazes de estabelecer julgamentos sobre a aceitabilidade ou não de determinadas estruturas da língua é uma das grandes premissas do Gerativismo.

Essa intuição do falante nativo não equivale à ideia de “certo” e “errado” presente em gramáticas normativas, mas à capacidade que o indivíduo possui de avaliar estruturas linguísticas, julgando se podem ou não ser produzidas na sua língua.

Tendo o linguista Noam Chosmky como fundador e principal teórico, o Gerativismo busca descrever as regras que fazem com que determinadas estruturas sejam aceitáveis na língua, enquanto outras não são. A ideia é que essas regras podem fornecer uma percepção sobre aquilo que é comum a todas as línguas (princípios universais) e aquilo que é específico de cada língua. As regras investigadas no Gerativismo não correspondem às regras gramaticais que aprendemos na escola, mas a um conhecimento linguístico internalizado pelo falante conforme ele adquire uma língua.

Espera-se que qualquer falante nativo de uma língua, desde que não apresente algum transtorno que afete a sua capacidade de desenvolver as habilidades linguísticas, seja dotado de intuição sobre a língua. Essa intuição do falante nativo não equivale à ideia de “certo” e “errado” presente em gramáticas normativas, mas à capacidade que o indivíduo possui de avaliar estruturas linguísticas, julgando se podem ou não ser produzidas na sua língua. Vejamos alguns exemplos:

(3) *Folha a caiu.

(4) *Menino um apareceu.

(5) A folha caiu.

(6) Um menino apareceu.

Um falante nativo do Português é capaz de reconhecer que as sentenças (3) e (4) não são aceitáveis, enquanto as sentenças (5) e (6) são. Isso não implica que o falante saiba explicar a regra ou analisar o fato linguístico. A análise é papel do linguista, o especialista que vai estudar aquela língua. Mas, intuitivamente, independente de estudo, o falante nativo possui um conhecimento sobre a aceitabilidade (ou não) de determinadas construções. Independente de escolarização, um falante nativo da língua não produzirá espontaneamente uma frase como (3) e nem a ouvirá sem um estranhamento sobre essa construção.

Um analista pode utilizar essa intuição do falante para estabelecer uma generalização: em português, não é aceitável o uso do artigo após o substantivo a que se refere. Esse tipo de julgamento é utilizado, por exemplo, em testes linguísticos experimentais, nos quais os falantes fazem avaliações sobre a aceitabilidade ou não de determinadas estruturas linguísticas.

A intuição recai sobre vários níveis da língua, como exemplificam as palavras apresentadas em (7) e (8):

(7) Desorganizar

(8) *Desdançar

Uma palavra como (8) é considerada não aceitável no Português, diferentemente de (7), a qual é perfeitamente comum e aceitável. Em desorganizar, temos uma ideia plausível: há uma reversão do processo de organizar, isto é, aquilo que estava organizado foi bagunçado. Já em desdançar, a ideia não parece factível: não é possível reverter o processo de dançar, ou seja, não dá para “desfazer” uma dança. Isso implica que a palavra desdançar não constitui uma estrutura aceitável no Português.

O conhecimento intuitivo do falante tem uma grande importância para os estudos linguísticos. Esse conhecimento é importante para estabelecer julgamentos sobre as diferentes construções linguísticas em análise e traz reflexões relevantes sobre as especificidades de cada língua.

 No livro “Sintaxe, Sintaxes”, o linguista Eduardo Kenedy explica que os julgamentos feitos com base na intuição linguística permitem aos estudiosos que investiguem diferenças e pontos em comum entre as línguas sem necessitar de recursos muito caros ou difíceis de executar.

É importante destacar que a intuição linguística não é meramente uma percepção pessoal ou um “palpite” sobre a língua. Pelo contrário, ela é um conhecimento adquirido pelo falante durante o processo de aquisição da sua língua nativa. É por isso que ela tem um valor científico nos estudos da língua.

O conhecimento intuitivo do falante tem uma grande importância para os estudos linguísticos. Esse conhecimento é importante para estabelecer julgamentos sobre as diferentes construções linguísticas em análise e traz reflexões relevantes sobre as especificidades de cada língua.

Assim, em algumas abordagens da linguística, especialmente no Gerativismo, que mencionamos acima, o próprio pesquisador pode ser capaz de avaliar as construções que está analisando. Isso ocorre porque, caso seja falante nativo daquela língua, ele possui intuição sobre o seu idioma, resultado do conhecimento linguístico armazenado por ele em sua aquisição da língua.

Portanto, quando se trata de língua, pode confiar na sua intuição de falante: ela diz muito sobre a língua que você fala.

Para saber mais:

KENEDY, Eduardo. Curso Básico de Linguística Gerativa. São Paulo: Contexto, 2013.

______. Sintaxe Gerativa. In: OTHERO, Gabriel; KENEDY, Eduardo (Orgs.). Sintaxe, sintaxes: uma introdução. São Paulo: Contexto, 2015.

MIOTO, Carlo; SILVA, Maria Cristina Figueiredo; LOPES, RUTH ELISABETH. Novo Manual de Sintaxe. Florianópolis: Contexto, 2013.

NEGRÃO, Esmeralda; SCHER, Ana; VIOTTI, Evani. A competência linguística. In: FIORIN, José Luiz (Org.). Introdução a Linguística I: objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. pp. 95-119.