Solidariedade a Thammy ou ao Thammy?
O uso de artigo definido antes de nome próprio muitas vezes depende da comunidade do falante
No português brasileiro, os nomes que usamos para nos referir às coisas do mundo – animais, objetos, cores etc. – podem vir antecedidos por artigos definidos (a, o, as e os). Ao falarmos sobre uma casa, por exemplo, podemos utilizar o artigo definido antes, a casa. Do ponto de vista de seu sentido, remover o artigo antes de um nome pode alterar sua interpretação, já que o artigo definido apresenta o referente de um nome como identificável pelo ouvinte/leitor, um referente específico. Vejamos:
(1) A bola pula.
(2) bola pula.
Em (1), o artigo antes de bola nos leva a compreender bola como específica. A falta do artigo em (2) permite a leitura genérica de bola (uma bola qualquer). Contudo, há contextos em que essa remoção do artigo não implica em mudanças no sentido do nome, como nos nomes próprios. Uma particularidade do português brasileiro é que os nomes próprios de pessoas (antropônimos) podem vir ou não antecedidos por artigo definido, como em (3) e (4).
(3) Você viu Camila.
(4) Você viu a Camila.
Ambos os contextos podem ser interpretados com o mesmo sentido, já que o nome próprio é, por natureza, individualizante, o que dispensaria artigo. Porém, diferentes valores podem ser aplicados a depender do contexto no qual a fala foi produzida. Alguns gramáticos, como Said Ali (1931), falam que se usa artigo antes de nomes próprios quando a pessoa é conhecida pelo falante e ouvinte, e que ele é apagado quando o falante pressupõe que o ouvinte não conhece a pessoa referida. Para esse autor, utiliza-se (4) quando as pessoas presentes na conversa conhecem Camila, e (3) quando Camila não é conhecimento compartilhado por todos presentes na conversação.
O artigo definido apresenta o referente de um nome como identificável pelo ouvinte/leitor
Você possivelmente está se perguntando se, durante a interação, preocupa-se em saber se todos que estão ali conhecem a pessoa da qual você quer falar para saber se deve usar ou não o artigo. A resposta é não. A maioria das frases e sentenças que falamos é feita de forma inconsciente. Em uma conversa espontânea, por exemplo, dificilmente paramos para pensar sobre qual forma utilizar. Isso também acontece quanto ao uso de artigo antes de nome próprio. A paródia da famosa frase de Shakespeare apresentada abaixo ilustra a dúvida nos usos.
Na verdade, pesquisas sugerem que o uso (ou não) do artigo antes de nome próprio está ligado à comunidade na qual o falante está inserido, um hábito linguístico dela. A região de onde provemos pode determinar o uso de artigo antes de nome próprio. Um falante natural do sertão de Alagoas omite o artigo ao falar o nome de alguém: é João, Maria, etc. Já um falante do litoral do estado, como Maceió, utiliza artigo antes de nome próprio: o João, a Maria. Essa diferença na língua entre diferentes regiões é o que consideramos como diferença dialetal: quando diferentes regiões apresentam comportamentos diferentes para um mesmo fenômeno da língua.
O uso (ou não) do artigo antes de nome próprio está ligado à comunidade na qual o falante está inserido
O falante faz o uso (ou não) do artigo antes de nome próprio de acordo com o hábito de sua região, embora fatores como situação de uso, faixa etária etc. podem interferir. De modo geral, é uma regra opcional para a língua: não há obrigatoriedade. É simples, não? Porém, essa variação pode evocar problemas de interpretação quando se confunde o artigo a com a preposição a.
É “a” ou “ao”?
Após anunciar parceria com a Natura para a campanha do dia dos pais (em 22 de julho de 2020), Thammy Miranda foi atacado por ser homem trans: diziam que pai é aquele que possui o órgão genital masculino; logo, ele não era homem, e sim mulher; devendo ser tratado como tal e os elementos da língua relacionados a ele deveriam vir no feminino: ela, dela, e, no caso do uso do artigo, a Thammy. Seus defensores travaram uma batalha online para que respeitassem seu gênero e seu tratamento: ele, dele, e o Thammy. Algumas confusões aconteceram nessa discussão, como a confusão entre o artigo definido a e a preposição a.
Internautas compreenderam que o a após solidariedade era o artigo definido, resultando em reclamações como custa dizer AO Thammy?. Contudo, a sentença Minha solidariedade a Thammy Miranda e sua família está perfeitamente correta. Na frase em questão, a é uma preposição, decorrente da relação do nome solidariedade com o que se segue (regência). Quem tem solidariedade, tem solidariedade A algo ou A alguma coisa. Necessita-se da preposição a para que a frase tenha sentido.
Para aqueles que pertencem a uma região que faz o uso, talvez seja estranho e incômodo a ausência do o.
O uso de o após a é, nesse caso, também optativo. Então tanto faz ser a ou ao.Ao não utilizar o em casos semelhantes,o falante não está sendo transfóbico, mas repetindo hábitos de língua de sua região, que não usa artigo definido antes de nome próprio. Do mesmo modo em que se vai à casa de Pedro; obedece a João; o falante expressa solidariedade a Thammy, e não ao Thammy. Pertencente a uma região onde o padrão é usar artigo antes de nome próprio, o falante expressaria solidariedade ao Thammy, iria a casa do Pedro e obedeceria ao João.
Há ainda os que se utilizam do não uso do artigo definido antes de nome próprio para perpetuar a transfobia.
Em mercado ignora ataques a Thammy, é necessário que haja a preposição a (quando não o para): ataques são A algo ou A alguém. O texto acerta ao utilizar apenas a preposição a antes de Thammy. A resposta erra ao achar que o a antes do nome é um artigo definido.
Eu, enquanto falante de um dialeto que não faz o uso de artigo antes de nome próprio, compreendo os a de ambas as frases como uma preposição. Para aqueles que pertencem a uma região que faz o uso, talvez seja estranho e incômodo a ausência do o.
O que concluímos com isso?
O uso de artigo definido antes de nome próprio muitas vezes depende da comunidade do falante, de sua região, já que essa é uma variação que apresenta características dialetais, ou seja, diferentes comunidades em espaços geográficos diferentes possuem formas de falar diferentes. O artigo é opcional, mas a transfobia, não.
Para saber mais:
SAID ALI, M. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1931.