O sentido de uma palavra está nela ou é construído?

A língua é instável, tendo em vista que as palavras mudam de sentido conforme são empregadas

Alcenir de Souza Luz e Maria Angélica Freire de Carvalho · Alcenir de Sousa Luz está cursando Mestrado em Letras/Linguística na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Ela estuda como as palavras produzem sentido no uso que se faz da língua. Maria Angélica Freire de Carvalho é professora universitária, atua na Universidade Federal do Piauí (UFPI). É doutora em Linguística e desenvolve estudos na área de leitura; interessa-se por investigações sobre atribuição de sentidos e funcionamento comunicativo.

É possível que você já tenha consultado o significado de algumas palavras em dicionários e em sites específicos e identificado que não há uma referência única para esse significado. Refletir sobre a relação entre a palavra e o sentido que a ela se possa atribuir faz parte de uma teorização linguística em que os pontos de vista variam de acordo com os autores. Alguns defendem que o sentido se constrói no contraste de elementos no sistema linguístico; outros destacam o extralinguístico associando aspectos pragmáticos, isto é, os usos comunicativos. O fato é que a significação é um fenômeno linguístico que merece atenção. Neste texto de divulgação, vamos por uma linha de estudos semântico-enunciativos que questiona a cultura disciplinar que entende os sentidos como algo estanque e preso às palavras, já determinado. Por esse viés, a palavra não comporta um conteúdo semântico estável, próprio da unidade (um sentido primeiro) do qual os outros valores podem ser derivados, visto que todos os sentidos são construídos no texto; quer dizer, os sentidos circulam, são instáveis, e só se estabilizam no texto a partir de marcas linguísticas que estão em jogo.

[A] significação é um fenômeno linguístico que merece atenção. Neste texto de divulgação, vamos por uma linha de estudos semântico-enunciativos que questiona a cultura disciplinar que entende os sentidos como algo estanque e preso às palavras, já determinado.

Comecemos a discutir e estabelecer alguns pontos. Sabemos que palavras como garoto, moleque, pirralho são tidas como sinônimos de menino. Mas será que ao dizer o pequeno está no quarto e o moleque está no quarto estamos expressando o mesmo sentido sobre menino? Notamos que não; na verdade, os termos moleque e pequeno constroem representações diferentes sobre o ser. Isso nos mostra que os sinônimos nem sempre geram os mesmos valores referenciais, logo, trocar uma palavra por outra não é uma via única, envolve um processo bem mais complexo de produção de sentido.

Questões como essa nos despertaram indagações sobre o tratamento que é dado ao estudo do sentido para além da visão reducionista que possamos ter, ou pelo menos demonstramos ter através de práticas, que revelam um entendimento de que cada unidade da língua comporta um sentido absoluto.

A nossa base teórica sobre o sentido está voltada para uma perspectiva Construtivista da linguagem, responsável por entender que os sentidos não são dados, mas construídos por meio da interação que as unidades da língua estabelecem umas com as outras dentro do texto (chamado de cotexto) e do contexto (que pode ser chamado de situação enunciativa). Considerando ainda que o texto é quem se encarrega de desencadear o contexto, porque, nessa teoria, o contexto não é externo, ele está engendrado no próprio texto. Isso quer dizer que um texto é interpretável apenas em relação a um contexto e, ao mesmo tempo, o texto desencadeia tipos de contextualizações com as quais é compatível, como defende o linguista francês Jean-Jacques Franckel, em obra de 2011.

[O]s sinônimos nem sempre geram os mesmos valores referenciais, logo, trocar uma palavra por outra não é uma via única, envolve um processo bem mais complexo de produção de sentido.

Ficou pensando como seria isso na prática? Tomemos um enunciado: Ele brincou comigo. Se considerarmos tal enunciado fora de uma situação de uso, o ouvinte/leitor poderá atribuir vários sentidos, projetar diversas interpretações; porém, para que o sentido seja efetivamente estabilizado/definido, precisamos contextualizar o dito. Para isso, poderemos imaginar, inicialmente, duas situações. Na primeira, uma criança poderia se encontrar com sua mãe, na saída da escola, e dizer, olhando para seu coleguinha: mamãe, ele brincou comigo. Nesse caso, ele constrói a representação de um menino (o coleguinha) e brincar tem sentido de se divertir, entreter um ao outro, de modo que ambas as crianças participaram ativamente da ação de brincar. O comigo expressa a ideia de companhia. Outra situação envolveria uma jovem que, ao término de um relacionamento amoroso, concluiu: ele brincou comigo. Ele constrói a representação de o namorado, a quem é atribuída a atitude de se divertir com ela, mais especificamente com os sentimentos dela. Então, aqui, um pratica a ação sobre o outro, fazendo com que a jovem se sinta usada, como um brinquedo, imprimindo ao comigo o sentido de instrumento. Esses casos nos elucidam que a palavra não significa por si só, mas sim no e pelo enunciado, o que leva Franckel, ainda no texto de 2011, a dizer que o sentido de uma unidade só se origina a partir de uma labilidade, isto é, de uma dinâmica, que é fruto da linguagem entendida como atividade, uma atividade criativa que viabiliza a proliferação e a reformulação de sentidos.

É importante explicar porque falamos de enunciado, e não de frase, oração, sentença ou qualquer outro termo mais comumente utilizado. A linguista francesa Sarah de Vogüé, em um conhecido texto de 2011, nomeado Culioli após Benveniste: enunciação, linguagem, integração, afirma que, quando falamos de enunciado, referimo-nos a um conjunto de palavras a partir do qual se organiza certo efeito de sentido. O uso desse termo é uma escolha linguística por sermos adeptos de um teórico francês chamado de Antoine Culioli, o qual se dedicou a uma perspectiva Construtivista da linguagem, isto é, à linguagem como atividade humana de construção de sentido, que se dá enunciado por enunciado.

Esse assunto também envolve outra questão sobre a noção de contexto. Arriscamo-nos a dizer que a maioria de vocês já passou por situações do tipo: perguntamos para alguém o que significa determinada palavra e a pessoa nos responde “depende do contexto”. Como entendemos essa resposta? Que o sentido está fora do linguístico, no extralinguístico? Não. Compreendemos que devemos buscar o sentido de uma palavra no próprio texto. Ocorre que o enunciado, o texto é que nos leva à situação contextual para a construção do sentido. Significa dizer que não podemos extrapolar o dito e buscar fora do texto sentidos para ele, já que todo enunciado define seu ambiente linguístico, que carrega condições para sua interpretação. Nesse aspecto, a noção de contexto na teoria de Culioli se opõe à da Pragmática, pois, para o campo da Pragmática, o contexto é externo ao texto; consiste em condições de produção em um dado ambiente extralinguístico, ou seja, a ênfase está no caráter circunstancial da atividade significante, ressalta Sarah de Vogüé, no texto de 2011 acima citado.

[E]m vez de recorrer apenas a glossários ou sites de buscas para entender um texto, devemos investir também na tentativa de identificar o sentido no próprio texto, relacionando as unidades presentes e buscando sua compreensão no diálogo entre o texto e o contexto.

Vejamos um exemplo: o bolo está bom. Esse enunciado (o cotexto) nos remete a várias representações do que seria bom, entre as quais podemos citar: 1) o bolo está no ponto, ou seja, assado; 2) o bolo está gostoso, saboroso; e 3) o bolo não está estragado. Com isso, compreendemos que o enunciado nos leva ao contexto para definir o sentido de bom, quer dizer, somos levados a nos questionar qual é a situação enunciativa em jogo, só assim podemos estabilizar o sentido de bom.

Assim autenticamos que a língua é instável, variável, tendo em vista que as palavras mudam de sentido conforme são empregadas nas diversas situações de uso linguístico. Sabendo disso, em vez de recorrer apenas a glossários ou sites de buscas para entender um texto, devemos investir também na tentativa de identificar o sentido no próprio texto, relacionando as unidades presentes e buscando sua compreensão no diálogo entre o texto e o contexto.

Para saber mais

DE VOGÜÉ, Sarah de. Culioli após Benveniste: enunciação, linguagem, integração. In: DE VOGÜE, Sarah de; FRANCKEL, Jean-Jacques; PAILLARD, Denis. Linguagem e enunciação: representação, referenciação e regulação. Organização e tradução de Márcia Romero e MilenneBiasotto-Holmo; posfácio de Valdir do Nascimento Flores. São Paulo: Contexto, 2011.

FRANCKEL, Jean-Jacques. Referência, referenciação e valores referenciais. In: DE VOGÜE, Sarah de; FRANCKEL, Jean-Jacques; PAILLARD, Denis. Linguagem e enunciação: representação, referenciação e regulação. Organização e tradução de Márcia Romero e Milenne Biasotto-Holmo; posfácio de Valdir do Nascimento Flores. São Paulo: Contexto, 2011.