Um conchego menos aconchegante?

De “conchegar” para “aconchegar” ocorre um fenômeno fonomorfológico (relativo ao som e à forma das palavras) bem conhecido na história da língua portuguesa

Antonio Carlos Silva de Carvalho e Marcelo Módolo · Antonio Carlos Silva de Carvalho é doutor em Filologia Românica pela USP e sua área de pesquisa trata de como o latim vulgar modificou-se para formar as línguas neolatinas (português, espanhol, italiano, francês, romeno). Marcelo Módolo é professor da USP. É doutor em Filologia e Língua Portuguesa e sua pesquisa trata de como as palavras se combinam, a sintaxe.

O cearense João Franklin da Silveira Távora, mais conhecido como Franklin Távora, iniciou, segundo os críticos, o Romantismo de caráter regionalista no Nordeste. Foi autor de transição, entre o Romantismo e o Realismo-Naturalismo. Uma de suas obras mais marcantes é O Cabeleira (1876), romance passado em Pernambuco no século XVIII que narra a saga de um “herói do mal”, José Gomes, conhecido como Cabeleira, cujas atrocidades que aterrorizaram o povaréu da região foram cantadas em inúmeras trovas populares.

A leitura atenta do livro traz o emprego por cinco vezes do verbo “conchegar”, variante de “aconchegar”, forma corriqueira hoje em dia mas não utilizada pelo autor, o que despertou nossa curiosidade. De “conchegar” para “aconchegar” ocorre um fenômeno fonomorfológico (relativo ao som e à forma das palavras) bem conhecido na história da língua portuguesa chamado prótese, que nada mais é do que o acréscimo de um segmento fonético em posição inicial de palavra — talvez o leitor conheça outros exemplos, como “avoar” e “alembrar”. Mas, por que o usuário, com o passar do tempo, teria acrescentado esse prefixo “a” ao verbo “conchegar”, criando a forma variante “aconchegar”?

Certamente não existe uma única resposta para essa questão, que passa por diferentes fronteiras linguísticas, como: i) metaplasmos — mudanças formais das palavras causadas por aspectos de natureza sonora —, em função da prótese; ii) variação; iii) prefixação; iv) expressividade; v) mudança semântica etc. Logo, sem pretender dissecar as possibilidades investigativas, apresentamos a seguir algumas reflexões sobre o fato em foco, com o fito de entender melhor sua singularidade.

A soma das partes é igual ao todo?

Tudo indica que os falantes, por alguma razão intangível, principiaram a ver nesse “a” protético (ou seja, inicial) um elemento de reforço de expressividade necessário. Assim, teriam vislumbrado o ensejo de enriquecer a composição com novos matizes significativos propiciados pela adjunção do prefixo “a” ao verbo “conchegar”, sem recearem comprometer a inteligibilidade do vocábulo resultante, devido ao acúmulo informacional. Com efeito, o falante conhecedor do significado das partes de uma composição sempre é capaz de, mediante algum esforço imaginativo, alcançar seu sentido, por mais obscura ou remota que a motivação por trás dela possa parecer. Partindo dessa premissa, convém dividirmos o todo em suas partes principais para que possamos compreender melhor o resultado final.

A leitura atenta do livro [O Cabeleira] traz o emprego por cinco vezes do verbo “conchegar”, variante de “aconchegar”, forma corriqueira hoje em dia mas não utilizada pelo autor, o que despertou nossa curiosidade

Sem entrar em minuciosas segmentações concernentes ao morfema (unidade linguística significativa), a segmentação de “aconchegar” revela três núcleos que carregam significado, sendo duas formas presas (que só funcionam ligadas a outra forma, morfológica ou sintaticamente), as preposições que atuam como prefixos, “a” e “con”, e uma forma livre (que pode funcionar como frase, ou seja, qualquer palavra e também alguns morfemas soltos, como os pronomes pessoas do caso reto eu, tu, ele etc.), o verbo que atua como elemento principal da palavra, “chegar” (“a + con + chegar”). Devido à importância desse núcleo principal, tanto externa quanto internamente para a composição, cabe algumas considerações a seu respeito.

O Grande Diccionario Portuguez (ou Thesouro da Lingua Portugueza), do Dr. Frei Domingos Vieira, publicado em 1871 na cidade do Porto, apresenta uma longa explanação, da qual aproveitaremos alguns pontos, sobre o verbete “chegar” — mantendo a ortografia da época, devido às características da obra; segundo atesta, esse verbo proveio do latim plicare “dobrar”, mudando-se a pronúncia pl em ch, como em chuva, de pluvies e chorar, de plorare, etc.; também o Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa, de Antenor Nascentes, sanciona essa origem: “Do lat. plicare, dobrar (as velas, quando o navio chega)”. Conforme podemos observar, Nascentes não só confirma a etimologia do termo como o associa a um traço inextricável do povo português, seu vínculo histórico com o mar, as navegações. Inclusive, ao que tudo indica, vem daí a motivação para sua mudança de significado, vez que passa de, fundamentalmente, verbo transitivo direto  com o significado de “aproximar” (Chega a cadeira para a mesa.) para verbo transitivo indireto, com o significado de “conseguir, atingir” (Juntando a competência dos investigadores com a incompetência do ladrão, depressa se chegou à detenção dos criminosos.) e, também, verbo intransitivo com sentido de “atingir o lugar de destino” (O professor já chegou.), com acentuada carga semântica de movimento; isso sem contar a acepção totalmente diversa da latina.

Tomado a Vieira, o conjunto de exemplos subsequente registra essa mudança já efetivada no século XIX: i) Aproximar, mover para perto, para junto, fazer estar perto: Chega-me cá aquella bilha; ii) Ser transportado por agua, fallando das cousas: Chegaram vinhos estrangeiros pelo paquete de Bordéos; iii) Figuradamente e fallando das cousas: Chega a carruagem; Chegava o inverno; iv) Tocar com a mão ou outra parte do corpo: Não chego á árvore; v) Chegar um homem a uma mulher, e vice-versa, ter com ella copula carnal: N’este jejum não comião peixe, nem ovos, nem cousas de leite, nem bebião vinho, nem em todo o tempo da Quaresma chegavão a suas mulheres. Nessa lista de exemplos, e em todos os muitos outros arrolados na obra, o resultado da translação é o verbo português “chegar”, formalmente bastante alterado em face do verbo latino plicare, e com nova transitividade e novo sentido consolidados — nesse processo, salta aos olhos a carga semântica voltada para a ideia de aproximação e de movimento adquirida pelo verbo.           

Direcionando o foco para os núcleos marginais de “aconchegar”, convém discorrermos agora sobre a forma presa “con”, alomorfe (ou variante do morfema) “com”, do latim cŭm, cujos significados básicos de companhia e movimento para o mesmo lugar se coadunam perfeitamente com o sentido de “chegar”, intensificando-o. Por sua vez, a mudança de “com” para “con” se dá por busca de facilitação da pronúncia, ou seja, trata-se de mera razão fonética — ao se juntar a palavras iniciadas com a consoante c o m passa a n. Vieira atesta apenas a forma “conchegar (De com, e chegar). Chegar, unir uma cousa á outra, deixando entre ellas pouco intervallo. — Acommodar, fornecer os commodos, conchêgos da vida”. N’O Cabeleira, que também é do século XIX, não se verifica o verbo “aconchegar” como já dito, temos sim estas cinco ocorrências de “conchegar” (e seus congêneres):

i) “Teodósio, não estando mais para conversa, conchegou o chapéu de palha à cabeça para que o vento não lho arrebatasse, (…).” p. 6;

ii) “— Não, não, minha mãe! exclamara ela. Não te deixarei, haja o que houver. Então ela vira que o cadáver erguera os braços para conchegá-la, ao que parecia, ao seu seio” p. 38;

iii) “O bandido conchegou-a ao peito e abafou-lhe as últimas palavras com um beijo.” p. 48;

iv) “Aproximou-se de Luísa, tomou-a nos braços, conchegou-a ao seio, e depôs-lhe nos lábios um beijo de amor.” p. 70; e

v) As mães conchegaram bem a si os filhos menores, que tinham pela mão; (…)” p. 91.

Já o formante “a”, do latim ăd, indica basicamente a ideia de aproximação, direção para (no mais das vezes com ideia de movimento), junção; logo, reforça o sentido de “con”, que por sua vez intensifica o sentido de “chegar” no que concerne às noções de aproximar juntando, ou seja, a nova palavra, “aconchegar”, apresenta dois reforços semânticos, vez que seus três núcleos encerram — além de outros matizes semânticos — tanto a ideia de aproximação quanto a de movimento. Assim, o elemento protético “a” merece ser considerado mais de perto.

Já o formante “a”, do latim ăd, indica basicamente a ideia de aproximação, direção para (no mais das vezes com ideia de movimento), junção; logo, reforça o sentido de “con”, que por sua vez intensifica o sentido de “chegar” no que concerne às noções de aproximar juntando, ou seja, a nova palavra, “aconchegar”, apresenta dois reforços semânticos, vez que seus três núcleos encerram — além de outros matizes semânticos — tanto a ideia de aproximação quanto a de movimento.

Ao definir “prótese”, o Dicionário Houaiss da língua portuguesa traz “acréscimo de um elemento fonético (sílaba ou som) no início de um vocábulo, sem alteração do significado (p. ex., abagunçar, de bagunçar)”; tratando especificamente do “a” prefixal, Rodrigues Lapa, em sua já clássica Estilística da língua portuguesa, afirma que de modo geral esse elemento é repudiado na língua moderna por ser considerado arcaizante, sendo certas vezes utilizado em tom vagamente humorístico — o personagem Seu Creysson, do extinto programa de humor Casseta & Planeta, cunhou a expressão “Eu agarantcho!”, em que se verificava esse uso. Pois bem, conquanto concordemos em parte com os autores, não há como afirmar ser esse o caso de “aconchegar”, pois i) em nenhum dos exemplos que arrolamos há margem para humor; ii) “conchegar” é a forma mais antiga e com muito menos ocorrência hoje em dia; e iii) não cabe falar em acréscimo de elemento sem alteração de significado, vez que a intensificação que o prefixo “a” confere a “conchegar” já revela caráter distintivo.

Dados colhidos no “Corpus do Português” mostram 13 ocorrências de “conchegou” (no século XIX) e 14 de “aconchegou”( 4 no século XIX e 10 no século XX); portanto, a forma protética suplantou a outra no português atual

Em linha de raciocínio semelhante, Rocha Pombo, no Dicionário de sinônimos da língua portuguesa, afirma: “Notemos que o prefixo a de aconchegar-se lhe aumenta uma ideia de ação imediata, flagrante atual. Dizemos: ‘Eles se aconchegaram’ querendo exprimir que duas ou mais pessoas, de propósito, com a mesma solicitude se juntaram, ou uniram: tanto não diz: ‘conchegaram-se’…, pois até à força podiam conchegar-se. ‘Queremos ou desejamos aconchegar-nos o mais possível’; e não: ‘conchegar-nos’, pois este verbo não marca tão bem atividade e gradação como o outro. ‘Concheguem-se mais’ não é, pelo menos, tão próprio como: ‘Aconcheguem-se mais’.” Como podemos observar, trata-se de um pormenor que em muito enriquece a palavra, turbinando-a.

De volta pro meu aconchego

Dados colhidos no “Corpus do Português” mostram 13 ocorrências de “conchegou” (no século XIX) e 14 de “aconchegou”( 4 no século XIX e 10 no século XX); portanto, a forma protética suplantou a outra no português atual, indicando que o falante tem preferido a intensidade do aconchego, por diversificadas razões — como diz o ditado “Cada um sabe onde seu calo aperta”.

A lista é longa em português, e ainda continua produtiva, de palavras que apresentam formas variantes (com ou sem a adjunção do “a”), muitas delas já aceitas pelos nossos lexicógrafos, como: agasalho por gasalho, alagoa por lagoa, alembrar por lembrar, assoar por soar, avoar por voar. No fundo, o povo, verdadeiro dono da língua, escolhe e consagra o uso de acordo com suas necessidades comunicativas.