A escrita e o pêndulo: definindo um campo atrator
Desafios de escrever e suas dinâmicas.
Olhar para o papel em branco e não saber por onde começar configura uma cena comum, com a qual muitas pessoas se identificam. Mas por que não é fácil escrever, mesmo para adultos com escolarização de nível superior? A resposta não é simples, assim como tudo que envolve atividade linguística, ou seja, há complexidade em vários níveis e em todas as formas de usar uma língua. É possível, no entanto, lidar bem com a complexidade e a instabilidade que envolvem a atividade de produção escrita.
Escrever envolve busca por estabilidade, ainda que relativa e temporária. A escrita requer controle de um sistema – a língua – que por natureza é dinâmico, se modifica sem hora marcada e assume várias faces a depender dos componentes envolvidos na situação comunicativa que se apresenta aos usuários de qualquer sistema linguístico. Podemos pensar a língua como um pêndulo oscilante com momentos de estabilidade transitória quando encontra campos atratores formados por um conjunto de elementos combinados. Essa complexa dinâmica da língua em uso precisa ser controlada por seus usuários ao se expressarem em diferentes contextos. Considerando a língua nessa metáfora, o usuário, de frente para sua página em branco, se pergunta: quem é o destinatário do texto, qual o objetivo a ser alcançado, como selecionar e organizar o que dizer etc. Ele precisa encontrar um campo atrator com os elementos socialmente convencionalizados para executar sua tarefa.
A literatura ilustra casos de personagens que se fazem esses questionamentos ao se verem diante da tarefa de escrever. Em Anarquistas, graças a Deus, de Zélia Gattai, ainda que tenham definidos o propósito comunicativo de agradecer e o gênero textual carta, as personagens Dona Angelina e suas filhas se mostram inseguras, inicialmente, sobre escolhas lexicais referentes ao destinatário do texto de uma carta de agradecimento. Vale retomar o trecho desta narrativa aqui:
- Quem vai escrever a carta para mim? – dirigia-se às duas filhas mais velhas. - Ah, eu que não vou! – recusou-se Vera. – Escrever para um laboratório, pra gente que nem conheço? A senhora nem sabe o nome do homem de lá, sabe? E para dizer como? Senhor Laboratório? Eu não! Só de pensar em uma coisa dessas, morro de vergonha... [...] Sentada junto à mesa, papel, caneta e tinteiro em frente (...), iniciou a difícil tarefa: “Ilmo. senhor...vocês acham que eu devo usar o Ilmo. ou é demais? – consultou Vera e Wanda que se divertiam ao ver o embaraço da mãe. “Bem, eu acho que vou cortar o Ilmo. e vou pôr Exmo. snr., o que é que vocês acham?” – pediu a opinião humildemente. “É assim que está escrito nos envelopes de reclames que mandam para o Ernesto, andei vendo...” “Que reclames são esses mãe? – riu Wanda, esboçando um ar de dúvida. “Ora! – irritou-se dona Angelina. “Da Dunlop, da Pirelli, do Auto-asbestos, Texaco, (...). [...] Empreitada difícil escrever uma carta sozinha, mas chegaria lá. [...] Levou uma semana inteira para chegar a esse começo de conversa e inutilizou não sei quantas páginas de um caderno escolar. (GATTAI, 2009 [1979], p. 166-167)
Por trás da dúvida inicial, relacionada à definição do interlocutor e à escolha da forma de tratamento, que causou tanta insegurança à Dona Angelina, afetando suas ações seguintes para desenvolvimento do texto, o trecho ilustra fenômenos importantes sobre experiência e aprendizagem. Primeiro, a personagem diz que leu envelopes de reclames (cartas comerciais) que chegaram para Ernesto, seu marido. A leitura de vários exemplares levou-a à percepção de que esse gênero de texto apresentava característica recorrente: o uso da construção “Ilmo. senhor” para se referir ao destinatário (pelo menos, naquele momento do século passado, essa era a convenção).
O fenômeno de natureza cognitiva por trás da observação de Dona Angelina é explicado por algumas teorias das áreas da linguística e da psicologia como percepção de padrões. Funciona mais ou menos assim: por meio de nossas experiências atravessadas pela escrita em vários domínios sociais, nossos canais perceptuais são capazes de identificar componentes semelhantes e diferentes nos textos, o que desencadeia formação de categorias para agrupá-los.
Sendo assim, Dona Angelina demonstra ter percebido, via experiência visual da leitura, algumas características socialmente convencionalizadas que compõem a grande categoria das correspondências. Esta é formada por outras subcategorias, a exemplo daquelas que contém reclames. As características deste gênero, no entanto, não são exatamente as mesmas para cartas de agradecimento, cartas pessoais, notícias ou monografias. Parece que falta a ela mais experiências com outros tipos de correspondências.
Uma semana se exercitando e Dona Angelina consegue iniciar seu texto. Para continuar sua empreitada, ainda precisa selecionar e organizar as ocorrências relacionadas ao uso do medicamento para humanos em uma cadela, e, ainda, articulá-las em sentenças que combinam palavras e sentidos. Essa atividade pode ser menos ou mais custosa para uns que para outros, mas a escrita sempre exigirá idas e vindas no texto, prática que resulta em exemplares escritos progressivamente melhores.
Durante a produção escrita, o pensamento segue rotas não lineares, ou seja, ideias se conectam a outras, trazendo à tona fatos, conceitos, imagens, contextos, expressões linguísticas etc., sem uma organização sequencial e consciente. O domínio inconsciente da língua pode se tornar consciente a partir da instrução explícita de especialistas ao conduzirem práticas de leitura e de escrita diversificadas.
Se a instrução explicita e as práticas autônomas de leitura conduzem o leitor à percepção de características que definem textos enquanto um gênero, a atividade de produção escrita as recruta, fortalecendo a representação cognitiva dessas características específicas e de outras relativas ao componente léxico-gramatical e ao conhecimento sobre o assunto. Esse processo de aprendizagem diminui a instabilidade do pêndulo que cada usuário constrói durante sua existência.
No momento da atividade de escrita, é preciso recrutar características do gênero textual e de outros componentes que integram um texto: autoria, destinatário, ocorrências, propósito comunicativo, contexto, léxico e gramática, como mostra a figura abaixo. Não é tarefa fácil harmonizá-los para compartilhar ideias, como demonstra Dona Angelina. Seguir um plano de escrita, em que sejam previamente definidos os componentes com função de imprimir alguma estabilidade ao pêndulo, costuma surtir efeitos positivos, observáveis tanto durante o processo de escrita quanto no produto final.
A formação do campo atrator para cada texto que se pretende produzir diminui os entraves durante o processo de escrita e as inadequações que costumam ser observadas no produto final. Quanto maiores forem as experiências com a escrita, antes, durante e depois da escolarização, mais categorias textuais são formadas, enriquecidas e armazenadas na cognição.
REFERÊNCIAS
GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. São Paulo: Companhia das Letras. 2009.