Pontuar é uma arte?

Uma conversa sobre os sinais de pontuação e seus usos.

Lou-Ann Kleppa · Lou-Ann Kleppa é linguista e desenvolve trabalhos com ênfase em Neurolinguística. Atualmente é editora da EDUFRO, a editora da Universidade Federal de Rondônia e também atua como membro de Conselho Editorial das revistas RE-UNIR e Estudos Linguísticos (GEL) e integra a Comissão de Popularização de Linguística da ABRALIN.

Asterisco é sinal de pontuação?

– Depende de como se define o conjunto de sinais de pontuação. Se forem só sinais não alfanuméricos que orientam a leitura, então a lista é grande: cabe a barra, apóstrofe, colchetes, chaves, até itálico, sublinhado e maiúscula. Se forem só sinais autônomos, seguidos ou precedidos por espaço em branco, então as marcas que precisam do suporte da palavra (negrito, itálico etc.) não entram no grupo.

Se pensamos um sistema de sinais de pontuação que não afetam a palavra (como apóstrofe, por exemplo), mas a frase ou texto, então ficamos apenas com onze sinais: alínea, ponto, vírgula, ponto e vírgula, dois pontos, reticências, ponto de exclamação, ponto de interrogação, aspas, parênteses e travessão (Kleppa, 2019).

– Não conheço nenhuma gramática que fala dessa alínea.

– Nem eu, mas Véronique Dahlet trata da alínea com muita eloquência. Muitas gramáticas mencionam o parágrafo, o recuo ou o espaço em branco antes do início do parágrafo, mas nenhuma delas trata o parágrafo como sendo um sinal. E não é. O sinal da alínea é o branco, é o espaço em branco da própria página que diferencia um parágrafo de outro. Aliás, na história da escrita, a separação de porções de texto aconteceu antes de se escrever as palavras separadas por espaços em branco ou de se inventar o ponto (que separasse palavras ou frases). 

– Observei que as gramáticas em geral listam em torno de dez sinais. Por que os manuais ou guias de pontuação trabalham com mais sinais?

– Penso que tenha a ver com a natureza da própria gramática: a gramática tradicional tem preocupação em apresentar um ideal de língua, de ser pedagógica e tratar o que pode trazer dificuldades para o usuário. Por isso você encontra gramáticas que apresentam a vírgula em capítulo separado. Acho que os manuais e guias, para se mostrarem como obras de consulta especializada, pretendem mostrar uma variedade maior de sinais.

– Os sinais de pontuação são sinais ortográficos?

– As reformas ortográficas regulam a grafia considerada correta das palavras, não das frases ou textos. Não se pode dizer que exista um jeito único e correto de pontuar, porque em muitos casos é possível trocar um sinal por outro (parênteses no lugar de vírgulas duplas ou travessões duplos, por exemplo). Usar exclamações ou reticências ao final de frases é uma decisão do autor, não da frase ou da língua.

– Então não há regras para os sinais de pontuação?

– As gramáticas apresentam várias, só que numa linguagem difícil de identificar no texto escrito. A noção de pausa, por exemplo, é um pouco vaga: temos a impressão de que o texto tem um ritmo, mas as pausas – são da escrita ou da leitura? Como se mede a pausa da vírgula, ponto-e-vírgula e do ponto final? Com cronômetro ou com a intuição? Outro problema é que a gramática não busca regras que sejam abstratas o suficiente: como ela parte de exemplos – e contraexemplos, as regras acabam sendo muito locais… e muitas! 

– O que seriam essas regras abstratas?

– Acho bem legal a ideia de Geoffrey Nunberg, publicada em 1990: todos os sinais fazem uma, duas ou três dessas operações: separar, delimitar e distinguir (marcar). São só três operações que se aplicam a todos os sinais – mas são operações que demandam interpretação.

Vou te dar exemplos: o travessão simples (no interior da sentença) separa um adendo/comentário da frase principal; já o travessão duplo delimita um trecho que poderia ser removido da sentença. Por fim, em textos ficcionais em língua portuguesa, o travessão pode distinguir a fala das personagens do resto da narrativa, marcando os diálogos. A vírgula é tratada como um mistério porque as unidades que ela separa, delimita e marca são muitas: separa unidades equivalentes entre si (por exemplo: orações coordenadas, itens numa lista), delimita segmentos movidos (por exemplo: adjuntos, a oração subordinada) ou removíveis (por exemplo: aposto, vocativo, oração encaixada) e marca a elipse (o verbo ausente). 

– Então todos os sinais de pontuação exercem função sintática?

– Separar e delimitar unidades são operações sintáticas, sem dúvida, porque o leitor identifica a função sintática do que está sendo separado ou delimitado através dos sinais. Eles tornam a sintaxe visível. É preciso conhecer as regras do que pode ser separado e delimitado, ou seja, é preciso entender como funciona a organização da sentença. Marcar ou distinguir do entorno já não é só uma operação sintática: as aspas servem, por exemplo, para marcar a voz do outro. Muito provavelmente a voz do outro é, em si mesma, uma unidade sintática. Seria plágio não diferenciar as minhas palavras das palavras de outro autor. Trazer outras vozes para o texto é uma decisão que o autor toma no plano enunciativo-discursivo. Marcar uma sentença com um sinal de interrogação para mostrar que aquilo é uma pergunta é um gesto enunciativo: na fala, a minha entonação resolveria a questão e o interlocutor saberia que fiz uma pergunta. O mesmo vale para o ponto de exclamação. Repare que tanto interrogação como exclamação (às vezes reticências também) são sinais finalizadores de sentença: separam uma sentença da outra.

– Uma revisora que ficou corrigindo as minhas vírgulas, afirmou que uma vírgula lá no texto era opcional. Existe isso, de vírgula opcional?

– Acho bem interessante a ideia de pontuabilidade (que reporto a Ana Cristina Bernardes, em sua tese de doutorado em 2002): se a sentença é composta por constituintes (ou seja, por segmentos cuja ordem é fixa, mas que podem ser movidos para outros lugares da sentença), então se abrem espaços para os sinais de pontuação marcarem essas operações. Períodos simples em ordem direta não abrem espaço para virtuais sinais de pontuação – a não ser os finalizadores. Se há opção, a opção seria então entre um sinal ou outro ocupando aquele espaço de pontuabilidade, não entre o uso ou não da vírgula. Quando um autor preenche esses espaços possíveis com sinais de pontuação, ele marca a sua presença como enunciador e a sua interpretação da segmentação da frase ou do texto.

Daria pra dizer então que os sinais de pontuação são operadores sintáticos quando separam e delimitam, mas quando são usados como marcadores, são mais pronunciadamente enunciativo-discursivos. Pontuar é uma arte porque as funções dos sinais de pontuação são múltiplas. 

Referências

BERNARDES, Ana Cristina de Aguiar. Pontuando alguns intervalos da pontuação. Tese de doutorado em Linguística defendida na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Campinas, 2002.

DAHLET, Véronique. As (man)obras da pontuação: usos e significações. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006. 

DAHLET, Véronique. “A pontuação e as culturas da escrita”. In: Revista Filologia e Linguística Portuguesa n. 8, 2006, p. 287 – 314.

KLEPPA, L. Onze sinais em jogo. Campinas: Editora Unicamp, 2019.

NUNBERG, G. The linguistics of punctuation. Center for the study of Language and information. Leland Stanford Junior University, 1990.