O discurso homofóbico

Uma análise de recursos linguísticos, retóricos e argumentativos do discurso homofóbico da extrema-direita brasileira.

Carlos Piovezani · Carlos Piovezani é professor de Análise do discurso da UFSCar e pesquisador do CNPq. Estuda os discursos da mídia e da política e a história da fala pública. É autor de "A voz do povo: uma longa história de discriminações" (Vozes, 2020).

Os discursos materializam as ideologias das classes e grupos de uma sociedade. A despeito de sua complexidade e de seus cruzamentos, eles poderiam grosso modo ser divididos entre os que discriminam as diferenças étnicas, econômicas, sociais e sexuais, por um lado, e os que defendem a inclusão dessas diferenças, por outro.

Em condições históricas de retrocessos políticos e comportamentais, os discursos da exclusão encontram solo fértil para se reproduzir. Mas, tais discursos não desaparecem nos contextos de conquistas inclusivas. No início do terceiro mandato consecutivo do Partido dos Trabalhadores na presidência da República, várias políticas afirmativas já haviam sido instauradas e outras começavam a ser propostas e implantadas.

Foi nesse contexto político que o então deputado federal Jair Bolsonaro aproveitou-se do anúncio de uma ação governamental de combate à homofobia para atrair os holofotes da mídia e encobrir sua medíocre atuação parlamentar.

Sua estratégia consistiu em reproduzir o discurso homofóbico, um dos mais segregadores, entre tantos que circulam em sociedades profundamente injustas, desiguais e excludentes como a brasileira. A força e o alcance das ideias e condutas heteronormativas são fundamentais para a adesão aos discursos do preconceito contra as sexualidades não conformistas.

Foi principalmente no início de seu sexto mandato que Bolsonaro adquiriu protagonismo no cenário nacional, com a oposição ao projeto que tornava crime a homofobia. Sua atuação ajudou a impor uma derrota ao Ministério da Educação, que pretendia distribuir material anti-homofóbico nas escolas, em 2011. Para a promoção de Bolsonaro, a cobertura e a repercussão midiática foram fundamentais.

Destacamos aqui somente duas das várias circunstâncias nas quais grandes veículos da mídia abriram espaço para a manifestação de sua posição: “O deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) protagonizou um novo bate-boca na Câmara nesta quarta-feira, ao criticar homossexuais durante uma audiência sobre segurança pública. Bolsonaro voltou a dizer que nenhum pai pode ‘ter orgulho de ter um filho gay’ e atacou o ‘kit gay’, material anti-homofobia que o Ministério da Educação estuda distribuir às escolas” (Folha de São Paulo, 27 de abril de 2011).

Poucos meses depois, a revista Época promoveria uma entrevista de Bolsonaro concedida a seus leitores. Nela, o deputado disse o seguinte:

Minha luta vitoriosa no Congresso foi contra a distribuição do kit gay nas escolas do 1º grau. Não podia me omitir diante do material que estimulava nossos meninos e meninas a ser homossexuais. E deviam se orgulhar dessa condição. Não acredito que nenhum pai possa se orgulhar de ter um filho gay. Se lutar para impedir a distribuição do kit-gay nas escolas de ensino fundamental com a intenção de estimular o homossexualismo, em verdadeira afronta à família, é ser preconceituoso, então sou preconceituoso, com muito orgulho. (Época, 02 de julho de 2011)

Bolsonaro forja ali uma personalização belicosa de sua atuação, que lhe rendera uma vitória e, ao precisar o adversário combatido, emprega uma expressão simplista, que causa forte impressão. Prova desse efeito foi o fato de que a expressão “kit gay” tenha passado a circular na imprensa e eventualmente mesmo entre alguns partidários mais desavisados de ideologias igualitárias.

O deputado constrói um simulacro grosseiro, mas eficiente, da posição antagonista, mediante o qual o material anti-homofobia se torna “intenção de estimular o homossexualismo”. A própria opção pela palavra “homossexualismo”, em detrimento de “homossexualidade”, já é um traço do discurso homofóbico.

Há ainda o uso de um argumento falacioso de que não haveria outra opção além destas duas opostas: ou a vergonha ou o orgulho de “ter um filho gay”. Assim, sua formulação exclui a possibilidade de que a sexualidade não seja motivo nem de uma nem de outra.

Populistas com traços fascistas tendem a transferir sua vontade de poder para questões sexuais. Daí deriva seu machismo, seu “desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não conformistas, da castidade à homossexualidade” (Eco, 2018, p. 54).

Bolsonaro voltaria à cena política e midiática na audiência na Comissão de Direitos Humanos no Congresso, realizada no dia 28 de junho de 2012. Manifestava-se ali novamente sua obsessão com a sexualidade alheia.

Presidente, o comandante Jean Willys abandonou a tropa de homossexuais. E a tropa de homossexuais está batendo agora em retirada. São heterofóbicos. Quando veem um macho na frente, eles ficam doidos. O que tá em jogo neste país aqui é a esculhambação da família. É isso que tá em jogo. E são tão covardes, que atacam lá nas criancinhas, a partir de 3, 4 e 5 anos de idade. Num é palavra minha, não. Fizeram aqui ó, no dia 15 de maio, o IX Seminário LGBT infantil. Canalhas! Canalhas! Emboscando crianças nas escolas. Canalhas, mil vezes! Homossexualismo? Direitos? Vai queimar tua rosquinha onde tu bem entender, porra! Eu não tenho nada a ver com isso. Não queiram estimular crianças, filhos de vocês aqui, humildes, que ganham um salário mínimo, tão recebendo uma carga de material homoafetivo na escola.

O deboche sobre os homossexuais, o contraste entre a virilidade do universo das armas e a debilidade do campo homossexual e ainda a linguagem chula, violenta e supostamente viril são elementos de seu discurso homofóbico.

Nele, os homossexuais são distorcidos como seres humanos pervertidos e reduzidos à sua sexualidade, completamente controlados por seus instintos sexuais e essencialmente constituídos por sua covardia. Tudo ao inverso da ostentação do que seriam as virtudes puras e a hipertrofiada virilidade, exclusivamente encontradas na macheza.

Os ataques obsessivos e a insistência na superestimação de si revelam mais sobre quem os produz do que sobre aqueles que preconceituosamente são perseguidos por essas discriminações.

Referências e sugestões de leitura sobre o tema
Borrillo, Daniel. A homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
Chapoutot, Johann. Virilidade fascista. In: História da virilidade. vol. 3. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 335-363.
Eco, Umberto. O fascismo eterno. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2018.
Green, James Naylor; Quinalha, Renan; Caetano, Marcio; Fernandes, Marisa. (Org.) História do movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Alameda editorial, 2018.
Piovezani, Carlos; Gentile, Emilio. A linguagem fascista. São Paulo: Hedra, 2020.
Saint-Clair, Clóvis. Gays sempre na mira. In: Bolsonaro: o homem que peitou o exército e desafia a democracia. Rio de Janeiro: Máquina de Livros, 2018.
Trevisan, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil (da colônia à atualidade). São Paulo: Objetiva, 2018.