Por que nem sempre fica claro quem é o responsável pela ação?
As estratégias linguísticas para não mencionar o responsável por uma ação.
E por que não falar quem fez a ação?
“Analisou-se o texto? Ele foi analisado? Ou sofreu análise?” Quando lemos um texto jornalístico, uma tese ou uma dissertação, por exemplo, geralmente, sabemos quem é o autor, pois, são materiais assinados. Porém, já observaram que raramente encontramos um “eu” ou um “me” neles? O “nós” é até usado (“Nós analisamos”); ou simplesmente o verbo na primeira pessoa no plural (“Analisamos”, “Retiramos”). Mas, por que será que isso acontece? Normalmente, expressões em primeira ou em terceira pessoa do plural são associadas a uma certa neutralidade textual, sem indicar quem escreve, mas apenas realçar opiniões ou fatos.
Só que, mesmo inconscientemente, toda ação discursiva tem um causador. Recorremos, então, a arranjos textuais que nos permitem “opacificar” ou retirar de cena o responsável por algo, seja o escritor do texto ou algo/alguém sobre o qual ele esteja falando. Entretanto, como fazemos isso na língua portuguesa?
Vamos apresentar 4 tipos de construções, observadas, principalmente, em textos acadêmicos e jornalísticos, que podem ser acionadas com essa finalidade, como em: (a) Analisam-se os dados (verbo transitivo direto + pronome SE); (b) Buscam-se analisar os dados ([verbo (semi)auxiliar + verbo principal]predicador complexo + pronome SE); (c) Foram analisados 112,5 milhões de requerimentos ([verbo (semi)auxiliar + verbo principal]predicador complexo); e (d) Os documentos que sofreram análiseforam leis e portarias ([perífrase com verbo suporte + nome]predicador complexo).
E qual é o fator decisivo que guia o escritor a isso? Bem, algumas são as razões. Em textos da mídia, um jornalista pode querer: ser evasivo ou não se comprometer a responsabilizar alguém ou alguma instituição a que é solidário. Em textos da ciência, a motivação pode ser simplesmente seguir uma tradição discursiva de pôr em evidência o fato científico e uma escrita menos subjetiva.
Mas, e aí? Como se daria, afinal, a configuração dessas construções no uso?
As construções transitivas diretas com pronome SE, vistas em (a) e (b), podem ser usadas para desfocalizar/indeterminar: (i) a pessoa que fala, como em “Constitui-se um corpus de 36 propagandas” (o próprio autor elaborou o corpus), ou (ii) a de quem se fala como em “Pretende-se reduzir a carga de impostos” (observamos uma menção a algo sobre o qual se fala e entende-se, segundo inferências contextuais, que quem pretende reduzir a carga de impostos é o governo federal).
Já em (c), observamos a composição SER / ESTAR / FICAR + verbo no particípio. Costumamos ver que, nessas estruturas, normalmente, não ocorre o preenchimento do termo classificado como agente da passiva, ou seja, aquele que realizou a ação. Observem o exemplo: “Serão realizadas operações em trechos, dias e horários específicos”. Inferimos, via contexto, que os possíveis executores das operações seriam agentes públicos. Entretanto, isso não é destacado na oração, o foco recai sobre o evento em si. Os potenciais agentes são omitidos.
Outra opção que temos na língua para apresentar uma cena segundo um ponto de vista passivo (no qual o foco está no elemento afetado) são as construções com verbo suporte, pouco citadas em sala de aula. Mas, como são formadas e como funcionam?
Semelhante ao que observamos nas locuções verbais com verbo (semi)auxiliar, temos, essencialmente, uma expressão composta por duas unidades primárias: uma que auxilia, que ajuda na construção do sentido e carrega as informações gramaticais (tempo, modo, pessoa e número verbais), a qual chamamos de verbo suporte, e um elemento nominal, o núcleo semântico da expressão, na qual há as informações principais sobre o evento em jogo.
Podemos perceber o uso de [verbo suporte + nome] em “Filha diz que idosa só recebeu vacina contra Covid-19 após ela denunciar que o líquido não foi aplicado na primeira tentativa”. Neste exemplo, quem aplicou a vacina está omitido. O foco recai, então, na cena/evento (a vacinação ocorreu somente na segunda tentativa).
Observamos, especialmente, os predicadores formados pelos verbos LEVAR, TOMAR, SOFRER, RECEBER, GANHAR e TER, que podem estar associados a um substantivo e, assim como nas construções com verbo (semi)auxiliar, são acionados para compor perífrases verbais usadas como mecanismos de desfocalização da entidade responsável.
Bem, e então que pontos ficam destacados por nós?
Ufa, refletimos um pouquinho sobre algumas expressões de passividade da nossa língua, né? As construções com -SE e as com verbo semi(auxiliar) + verbo principal costumam ser exploradas em sala de aula somente considerando seu perfil estrutural, sem qualquer destaque à possibilidade de opacificarou suprimir o responsável pela ação. Já as construções com verbo suporte nem são citadas na maioria dos materiais escolares, mas também podem ser associadas a essa possibilidade e são encontradas em diversos espaços de uso da língua: nas redes sociais, em textos jornalísticos e até mesmo em textos acadêmicos.
O mais legal, entretanto, é observar como as construções analisadas podem, sabiamente, ser acionadas pelo usuário da língua quando ele não quer determinar quem realizou certo evento, alguma ação.
E você? Às vezes também constrói o seu texto assim? Vale pensar em como a língua nos oferece tantas possibilidades ligadas a tantas motivações e sentidos, não é mesmo?