Poder, dever, querer e a arte de escolher

Os modais e as escolhas - uma perspectiva linguística.

Luisa Andrade Gomes Godoy · Luisa Godoy é doutora em Linguística e pesquisa como o significado dos verbos revelam a nossa compreensão do mundo.

A atual polêmica sobre a obrigatoriedade da vacinação é muitas vezes apresentada usando-se as palavras dever e querer. Ouvimos coisas como “eu não quero”, “eu acho que não devo”, “ninguém pode me obrigar”. Pensando de outra forma, vacinar-se, isto é, proteger-se de doenças fatais, é um direito, não um dever. Assim, talvez seja pertinente tratar do tema usando o verbo querer. Neste texto, veremos como a lógica dos chamados “verbos modais” pode esclarecer essa polêmica, além de lançar luz sobre a ideia geral das escolhas, com as quais sempre temos de lidar. E, quem sabe, os modais podem até nos ajudar a fazê-las.

Modais – o que são?

Minha professora costumava pedir para que eu modalizasse a minha escrita, que não fosse tão assertiva. O que ela queria dizer com “modalizar” era imprimir uma atitude mais ponderada nas frases, para não soarem como verdades universais ou generalizações fortes demais. Eu dizia “Isso é assim”, e ela sugeria “Isso parece ser assim”.

Pois bem, existem palavras e expressões (como parece, na frase acima) cuja função é justamente modalizar. Há diversos tipos de modalizadores, mas vamos nos ater aos chamados “verbos modais”, em específico os verbos poder, dever e querer, que compõem a tríade clássica da modalização verbal – é importante lembrar que uma forma muito usada para modalizar em português é ter de ou ter que, que é intercambiável ora por dever, ora por poder, mas vamos nos ater aos três verbos mencionados.

Trata-se de verbos chamados “auxiliares”, pois carregam as flexões do verbo principal (quando o verbo principal vem acompanhado de um auxiliar, ele não flexiona). Por exemplo, na frase Eu vou escrever, há uma perífrase verbal, com o verbo auxiliar vou carregando as flexões de pessoa (primeira) e tempo (presente) para o verbo principal escrever. Da mesma forma, na frase Eu posso escrever, o verbo posso carrega as flexões que seriam atribuídas ao verbo principal. Nas duas frases, vou, do verbo ir, e posso, do verbo poder, são auxiliares. Enquanto a perífrase com ir significa simplesmente tempo futuro, a perífrase com poder relativiza o evento descrito pelo verbo principal (não se sabe ao certo se ele vai mesmo acontecer). Ou seja, dentre os dois verbos auxiliares, ir e poder, apenas o segundo é modal.

Significado de poder, dever e querer

Observe intuitivamente a diferença entre dizer Eu posso escrever, Eu devo escrever e Eu quero escrever. Nos três casos, existe algum tipo de relativização, o que chamamos de “modalização”, da afirmação básica que é Eu escrevo.

Os modais deram trabalho para os antigos filósofos da linguagem, que tinham concebido uma maneira de estudar o significado das frases verificando o que se chama de “valor de verdade”, isto é, pensar que configuração de mundo é necessária para que a sentença seja verdadeira. Para dar um exemplo, vamos verificar o valor de verdade da frase Eu escrevo: se eu de fato escrever, a frase é verdadeira, se eu não escrever, a frase é falsa. Parece uma obviedade, mas na prática é uma boa forma de estudar o significado.

Porém, essa maneira de estudar semântica não se aplicava aos modais. Como verificar o valor de verdade da frase Eu posso escrever? Se eu escrever, a frase é verdadeira. Se eu não escrever, ela também pode ser verdadeira! Afinal, ela descreve uma possibilidade, capacidade ou permissão e não um fato.

E assim são os modais. Eles modalizam as verdades, ou os fatos, transformando-os em possibilidades, projetos, prerrogativas, vontades. Modais falam de leis e de probabilidades.

Para lidar com os modais, então, os filósofos criaram a ideia curiosa (e poética) dos “mundos possíveis”. Usando esse conceito para interpretar a frase Eu posso escrever, pensamos em infinitos mundos, cada um contendo uma possibilidade diferente. Em pelo menos um desses mundos, eu de fato escrevo.

Mais sobre os modais

Os verbos modais podem ser ambíguos. Quando eu digo Eu posso escrever, isso significa, de um lado, que me é permitido escrever e, de outro, que é possível que eu escreva. A primeira interpretação fica mais clara quando a gente completa a frase com: Eu posso escrever se eu quiser. A segunda fica nítida com: Eu posso escrever – se você precisar. Veja que na primeira estou declarando uma permissão, e na segunda, uma ação futura que pode ou não acontecer.

O verbo poder tem ainda uma terceira interpretação: “Eu posso escrever, gritou o aluno recém alfabetizado!” Nessa frase, poder significa conseguir.

O verbo dever também carrega a ambiguidade entre descrever uma lei ou uma probabilidade. Na frase Eu devo escrever, posso estar falando de uma obrigação ou de uma intenção para um projeto futuro. Pensemos contextos imaginários que vão disparar cada uma das leituras. Na frase Eu devo escrever um relatório para ganhar a bolsa, expresso uma obrigação de escrever; já na frase Eu devo escrever uma resposta mais tarde, agradecendo as mensagens de parabenização, expresso uma intenção de escrever.

Quando poder e dever descrevem direitos e deveres, recebem uma interpretação que se chama “deôntica”. Exemplos: Você pode ir e vir; Você deve respeitar a outra pessoa. Mas quando esses verbos projetam as possibilidades ou probabilidades de acontecimentos futuros, recebem uma interpretação chamada “epistêmica”. Exemplos: Pode chover hoje; Deve chover hoje.

O verbo querer é um pouco diferente dos outros dois, tanto na construção das frases quanto na interpretação. Nas frases, ele permite sem complicações um complemento nominal, como em Eu quero um sorvete. Com poder e dever, o complemento nominal não é tão natural. A frase Eu posso um sorvete parece ocultar um verbo dentro dela (comer, consumir, comprar etc). E a frase Eu devo um sorvete só pode ser interpretada em uma outra acepção do verbo dever, a de “ter uma dívida”, na qual ele não é modal, justamente por não ser auxiliar – note que nessa frase ficaria implícita ou faltante a informação da pessoa a quem eu devo o sorvete, ou seja, a própria transitividade do verbo dever, nessa outra acepção, é diferente.

Seja como for, a semântica de querer também difere de poder e dever: só há a interpretação deôntica. A frase Eu quero escrever só tem uma interpretação: a da vontade.

Pode, deve ou quer?

O conhecimento da lógica desses modais pode nos ajudar a tomar decisões. Sugiro o teste da sequência dos três verbos: primeiro, avalie o PODER, depois o DEVER e por último o QUERER.

Se você está diante de dois caminhos, então você PODE escolher qual seguir. Pode ir por aqui e pode ir por lá. Nesse caso, tanto a interpretação deôntica quanto a epistêmica se aplicam: você consegue ir por um dos caminhos e há a possibilidade que o faça.

O verbo poder foi explorado. Vejamos o dever. Se você PODE escolher um ou outro caminho, então, considere o dever deôntico (leis, comandos, orientações): você DEVE ir por aqui ou por lá? Considere se há um comando, lei ou orientação que diz isso. Em suma, verifique se existe algum senso deDEVER na sua decisão.

Se você for bem fundo nessa questão, verá que, na verdade, se você PODE, então você não DEVE (no sentido de não haver nenhum dever). Ou: se você devesse escolher o caminho 1 ou o caminho 2, então não precisaria pensar no poder nem no querer, pois a escolha seria dada pela lei ou comando anterior ao seu dilema.

Resumindo: se há a possibilidade (verbo poder) de escolher um dentre mais caminhos, então talvez o verbo dever não precise ser aplicado, e você fica apenas com o verbo querer.

A terceira etapa então é avaliar a questão mais difícil de todos os tempos: qual caminho você QUER?

Na tomada de decisões, muitas vezes procuramos o caminho do dever. Se não o encontramos nas leis e nos comandos explícitos, buscamos nos padrões e comportamentos costumeiros. Muitas vezes, chamamos o caminho do dever de responsabilidade. Mas, se há escolha, então há o poder, e se há o poder, a atitude mais responsável que se pode ter é encontrar o verdadeiro querer.

Os modais e as vacinas

A obrigatoriedade da vacinação no Brasil se tornou uma polêmica. Em grande parte, a meu ver, por se confundir um direito com um dever. A lógica dos modais e o teste dos 3 verbos nos ajuda a esclarecer essa confusão, na medida em que retira a vacinação da ideia de DEVER e a coloca mais justamente em termos de PODER e, consequente, de QUERER (assim como todos os direitos).  Quem não quereria fazer valer um direito que se tem?

Eu posso me vacinar – no sentido de ter o direito (além da gratuidade). E o melhor, o mundo possível em que isso ocorre é este mesmo em que estamos.