Quem pode produzir um dicionário?
O caso de “patroa” e “mulher-solteira” no dicionário Google e o Dicionário inFormal como espaço de contato na produção de saberes.
Para a maioria das pessoas, o primeiro contato com um dicionário, caso não o único, é no período escolar, nas aulas de Língua Portuguesa, em que ele é utilizado para a consulta do significado das palavras. Entretanto, a vida em sociedade faz com que novas formas de construção e circulação deste e de outros materiais sobre a língua surjam, com resultados às vezes imprevisíveis.
Recentemente, ganhou a mídia o caso dos verbetes “patroa” e “mulher-solteira” no dicionário do Google, e eles receberam críticas feitas pelas cantoras brasileiras Anitta e Luísa Sonza, como nos mostra a reportagem de Rafael Miotto, no portal G1, “Significados de ‘patroa’ e ‘mulher-solteira’ mudam no Google depois de críticas de Anitta e Luísa Sonza”. Inicialmente, o dicionário do Google trazia “patroa” como a “mulher do patrão”, ou seja, a definição da palavra feminina foi construída de forma submissa, como uma possibilidade existente apenas em sua relação com o homem, no caso, o que torna a mulher “patroa” é sua relação amorosa, afetuosa ou de submissão em relação ao “patrão” ou, ainda, a partir das funções que foram socialmente atribuídas às mulheres, como ser “dona de casa”. Quando observamos o termo “patrão”, vemos que o mesmo dicionário trazia o significado de “proprietário ou chefe de um estabelecimento privado comercial, industrial, agrícola ou de serviços, em relação aos seus subordinados; empregador”, ou seja, ao contrário de “patroa”, o “patrão” é visto como alguém ligado aos negócios e a uma posição de chefe – significado este que, após a intervenção das cantoras, passou a ser integrado pelo dicionário à palavra “patroa”.
Já o verbete “mulher-solteira” foi construído com base numa relação religiosa e machista, como “prostituta, meretriz”. Quando observamos as relações entre esses dois gêneros na sociedade, masculino e feminino, vemos que para as mulheres foram construídas relações de subalternidade, ou seja, de submissão em relação aos homens – um dicionário trazer que “mulher-solteira” significa algo como “prostituta, meretriz” evidencia um controle religioso e social sobre a liberdade da mulher em escolher viver uma vida solo, ao contrário do homem, historicamente e socialmente incentivado a “possuir”, a ser e ter tudo e todas as pessoas que puder, sem ter compromisso ou relação afetuosa.
A partir desses casos, podemos pensar: como podemos contribuir para a (re)construção de verbetes nos dicionários? Uma opção é fazer como fizeram as cantoras, levantar questionamentos e expor à sociedade e/ou participar diretamente na produção de um dicionário. Aliás, você conhece o Dicionário inFormal?
O Dicionário inFormalcomo é um ótimo exemplo de como, nós, pessoas, possuímos conhecimentos e impressões sobre nossa língua e de como podemos participar de forma ativa num dicionário, para além de simplesmente consultá-lo. Nele, é possível propormos significados para diversas palavras – ele é um dos espaços em que podemos estabelecer uma outra relação com dicionários, uma relação prática, integrada e participativa, para além da consulta de significado de palavras, como nos mostra Sheila E. de Oliveira, em seu livro “O Dicionário inFormal e a relação do falante com a língua”.
Quando observamos o Dicionário inFormal, vemos nele um espaço de contato entre saberes, já que qualquer pessoa pode propor significados e novas palavras, ou seja, criar um verbete – um conjunto de significados e exemplos que uma palavra pode ter e ser usada. O que vemos é justamente as pessoas falando e podendo falar de sua língua.
O Dicionário inFormal apresenta tanto o nome da pessoa que propõe aquela entrada, aquele significado e exemplo da palavra proposta, quanto o lugar em que ela mora. Do ponto de vista linguístico, ele se mostra muito rico pois (1) parte do uso que a pessoa que propõe faz, bem como sua comunidade, e (2) considera a questão do espaço, da localidade geográfica de quem propõe, o que gera um conhecimento ainda mais rico e detalhado.
Ao buscarmos pela palavra “patroa”, o Dicionário inFormal traz 5 sentidos, o primeiro deles, ainda muito próximo do exposto e criticado pelas cantoras, além de indicar como uma “referência do marido para a esposa”, ou seja, como uma forma do marido chamar a pessoa com quem é casado, traz uma frase com exemplo relacionado ao ato sexual. O quarto significado “referente à esposa e mulher” também se aproxima das críticas feitas pelas cantoras, entretanto, expande seu significado para além do contexto e papel feminino de “esposa”, referencia também o ser “mulher”. Vale destacar que o Dicionário inFormal conta ainda com botões de “concordo” e “não concordo”, de modo que todas as pessoas possam opinar se determinado significado faz sentido, ainda circula na sociedade e se cabe dentro da língua.
Os demais significados colocam a “patroa” em outros sentidos e contextos, enquanto pessoa ligada ao mercado de trabalho, “chefa de indústrias comércios empresas; estabelecimentos comerciais dona de tudo, mandante” e, também, enquanto pessoa empreendedora, “dona de algo” e que não possui relação de dependência com qualquer outra pessoa, passa a ser significada como aquela que manda.
Já a palavra “mulher-solteira” é construída apenas com um sentido, como aquela que “ainda não se casou”, sem qualquer sentido que ligue as escolhas das mulheres em serem solteiras com a prostituição, por exemplo.
Esses casos, em especial o do Dicionário inFormal, são importantes para pensarmos como nós podemos participar ativamente na construção de dicionários.
Seja questionando sentidos que foram construídos e impostos socialmente ao longo da história e que apresentam e reforçam significados violentos, opressores e antiquados, seja propondo e atualizando novos significados, de modo a tornar a sociedade mais justa em todos os espaços, destacando-se nos espaços e materiais que promovem conhecimentos sobre a língua e por meio da língua. Essas aparentemente pequenas ações trazem à superfície todo o imenso conhecimento linguístico que os falantes têm de sua língua, muitas vezes sem sequer saberem que o possuem.
REFERÊNCIAS
MIOTTO, Rafael. Significados de ‘patroa’ e ‘mulher-solteira’ mudam no Google depois de críticas de Anitta e Luísa Sonza. G1, 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/09/18/significados-de-patroa-e-mulher-solteira-mudam-no-google-depois-de-criticas-de-anitta-e-luisa-sonza.ghtml>. Acesso em: 4 de dezembro de 2021. Seção Tecnologia.
OLIVEIRA, Sheila Elias de. O DICIONÁRIO INFORMAL E A RELAÇÃO DO FALANTE COM A LÍNGUA. Revista da Anpoll, [S. l.], v. 1, n. 37, p. 262–272, 2014. DOI: 10.18309/anp.v1i37.784. Disponível em: https://anpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/784. Acesso em: 4 de dezembro de 2021.
MULHER SOLTEIRA. In: Dicionário inFormal. Brasil, 2009. Disponível em: <https://www.dicionarioinformal.com.br/mulher%20solteira/>. Acesso em 10 de fevereiro de 2022.
PATROA. In: Dicionário inFormal. Brasil, 2009. Disponível em: <https://www.dicionarioinformal.com.br/patroa/>. Acesso em 10 de fevereiro de 2022.