Reflexões a partir do projeto “Dicionário de Gêneros”: violência simbólica e fóbica

Uma perspectiva relevante da função do dicionário como instrumento linguístico na relação entre sujeito e língua e nos posicionamentos de pessoas LGBTQIA+.

Eric Fellipe Lima e Isabelle Teotônio Campos · Eric Fellipe Lima e Isabelle Teotônio Campos são graduandos em Letras (Tecnologias da Edição) do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais.

Não é incomum ouvirmos que uma palavra “não existe” quando ela não pode ser encontrada em um dicionário. Isso nos remete à reflexão da linguista e precursora no campo da Análise do Discurso no Brasil, Eni Orlandi, a qual diz que o dicionário, por ser parte importante da relação da sociedade com a história, é compreendido como um “instrumento linguístico e lugar de construção de memória social, em que se marca a relação da ciência com o Estado” (ORLANDI, 2000, p. 98).

Nesse sentido, o que é visto no dicionário é a representação histórica e linguística, de forma material e diretamente ligada aos sujeitos (enquanto resultantes de interferências históricas, sociais e políticas) e a forma que lidam com a linguagem e suas ideias, concepções e conceitos. 

A autora enfatiza que o “ponto fundamental para o dicionário, como para a gramática […] é trabalhar tendo em vista não a função do dicionário, mas seu funcionamento na relação do sujeito com a língua” (ORLANDI, 2000, p. 112), vendo-o, assim, como um discurso. Em outros termos, vê-lo como discurso, nesse caso, não como um recurso de comunicação, mas como um modo de produção social em que se manifesta uma ideologia intermediária entre o homem e a sociedade. Assim, cabe analisar como as violências sociais, contra população LGBTQIA+, por exemplo, são tratadas e conservadas nos dicionários, levando em consideração o contexto histórico e social atual.

A LGBTfobia perpassa desde ameaças físicas a ameaças simbólicas “à fronteira e/ou à hierarquia imposta pelo sistema heteronormativo, heterocêntrico e heterodeterminado contra a visibilidade dos gêneros e das sexualidades não hegemônicas” (SILVA; FRANÇA, 2019, p. 147). As ações fóbicas não são individuais, logo, pequenas ou grandes violências contribuem para a perda da dignidade humana – direito fundamental em uma democracia – da população LGBTQIA+.

Tais trivializações da vida dessas minorias sociais, isto é, pessoas pertencentes a grupos marginalizados social, cultural, política, étnica, física, religiosa ou economicamente dentro da sociedade, podem ser observadas também a partir da língua, simbolicamente composta por xingamentos e rejeições aceitas na dimensão cultural heteronormativa e explicitadas em estruturas convencionadas como adequadas dentro da sociedade, como é o caso do dicionário. 

A lógica de significação dos gêneros nesse instrumento linguístico foi construída a partir de processos ideológicos e de poder, isto é, “ela foi se constituindo como processos de subjetivação aos indivíduos por meio de um ideal heterossexual, nos quais o casamento, a monogamia e a constituição de filhos na família nuclear burguesa, se tornaram aparatos para a formação da subjetividade normativa da sociedade” (SILVA; FRANÇA, 2019, p. 151). Repetidos e aceitos, tais conceitos foram formados ao longo dos anos, gerando uma categorização que negocia com o poder vigente. Sob esse viés, o projeto “Dicionário de Gêneros” trabalha na perspectiva, pontuada por Orlandi (2000), de confrontar o saber considerado semanticamente normal e criar novas maneiras de ler, ou seja, de fazer frente aos significados usados para nos expressarmos ao longo da história.  

O projeto, produzido por Além do Arco-Íris, do AfroReggae, é um compilado de vídeos, lançados em 2016 e disponibilizados no Youtube, em que convidados de diferentes identidades procuram em dicionários pelo significado de sua identidade, nomes como Laerte, a colunista, e Lucas Rangel, atriz, produtor e bailarine, aparecem no projeto. Os convidados leem o que está presente em dicionários e comentam o que pensam sobre aquilo, além de trazerem significados mais pertinentes, uma vez que o presente nos dicionários não se dá por uma perspectiva social inclusiva e é, por vezes, preconceituoso. 

Em um dos vídeos, a consultora de diversidade e ativista Bárbara Aires, ao se descrever mulher transexual, diz que “é ser uma mulher como qualquer outra, com as diferenças que todas as mulheres têm”. Em contraponto, ao ler no dicionário Michaelis, depara-se com o primeiro significado: “que ou aquele que revela o transexualismo”. A primeira questão apontada é sobre o sufixo “ismo” que se refere a termos médicos, baseado na disforia de gênero e, portanto, é usado de maneira imprudente. Além da invisibilidade, tal conceito reafirma vulnerabilidades para tais pessoas, visto que o conceito perpassa áreas do saber hegemônicas, como a Medicina, eixo saber-poder que pode determinar comportamentos em relação a atitudes e pessoas. 

Ao definir, na playlist, a não binaridade de gênero como não ser homem e nem mulher, o estudante Oliver Costa reage à falta de um significado para sua identidade nos dicionários: “A gente se sente invisível e inexistente, sabendo que não tem nem uma palavra para mostrar como a gente é.” É visível, portanto, que a falta de significação em um meio oficial gera o apagamento de uma identidade. Ou seja,

quando não reconhecemos as diversas performatividades de gênero ao longo da história, nós destituímos o sujeito da sua especificidade e subjetividade como cidadão e sujeito de direitos e transformamos a sua vida em uma vida que não merece ser vivida, ou dito em termos butlertianos, transformamos a vida da população LGBTI+ em uma vida banal, uma vida precária, uma vida que não seja passível de luto (SILVA; FRANÇA, 2019, p.156 apud BUTLER, 2004; 2015a)

Dessa forma, os vídeos da playlist do projeto Dicionário de Gêneros projetam materializações sobre a língua ao trazerem uma perspectiva relevante da função do dicionário como instrumento linguístico na relação entre sujeito e língua e nos posicionamentos de pessoas LGBTQIA+ a respeito dos significados – ou de sua ausência – de termos sobre representações de identidades.  Como explica Eni Orlandi,

ao tomar o dicionário como discurso, podemos ver como se projeta nele uma representação concreta da língua, em que encontramos indícios do modo como os sujeitos – como seres histórico-sociais, afetados pelo simbólico e pelo político sob o modo do funcionamento da ideologia – produzem linguagem. (ORLANDI, 2000, p. 99)

Os exemplos abordados são uma parcela pequena da importância de todo o assunto tratado no projeto. Por isso, a discussão é de extrema relevância, uma vez que o contexto histórico e social atual precisa ser levado em consideração na produção de significados e nos processos de inclusão social.

Nesse sentido, os dicionários podem ser material da Análise do Discurso, ou seja, são passíveis de serem analisados criticamente a partir de condições e contextos histórico-sociais, como as violências homofóbicas para com a população LGBTQIA+, por exemplo.

REFERÊNCIAS

DICIONÁRIO de gêneros. [S. l.: s. n.], 2016. 10 videos. Publicado pelo canal AfroReggae. Disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLd_DrxcT5EXu4acRTYred58NfotkpYfJL. Acesso em: 20 jun. 2021

ORLANDI, Eni. Lexicografia Discursiva. ALFA: Revista de Linguística. São Paulo, v. 44, p. 97-144, 2000

SILVA, Sérgio; FRANÇA, Alexandre. Vidas Precárias: a Performatividade na Constituição das Violências Fóbicas em Gêneros e Sexualidades. Psicol. cienc. prof. [online]. 2019, vol.39. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/mCPPk5RzXXJvzjDwRdT5BRR/?lang=pt. Acesso em: 22 jun. 2021