O Português’ são muitos – são, inclusive, variedades não europeias

A diversidade linguística da língua portuguesa ultrapassa o território português.

Amanda Balduino · doutora em Filologia e Língua Portuguesa. Ela estuda diferentes variedades da língua portuguesa, especialmente as variedades africanas.

Quase me apetece dizer que não há uma língua portuguesa, há línguas em português.
É uma língua que tinha que passar, inevitavelmente, por transformações, segundo os lugares onde a falam, as culturas e as influências.
É um corpo espalhado pelo mundo
.

José Saramago

A frase acima, de José Saramago, foi retirada do filme Vida, Línguas em português de Lopes (2003). Caracterizando a língua portuguesa como um “corpo espalhado pelo mundo” e, portanto, suscetível a transformações linguísticas impulsionadas sócio e culturalmente, o autor menciona até mesmo “línguas em português”. Embora nosso foco de discussão não seja o estatuto político do que Saramago denomina ‘língua’, chama atenção o modo como o autor reflete sobre a heterogeneidade e complexidade da língua portuguesa – elocubração que certamente já atravessou a mente de qualquer falante ao se deparar com um modo de falar muito diferente do seu próprio. A ponderação literária de Saramago oferece, assim, um estímulo inicial para um vasto debate (como fez Rosa Virgínia Mattos Silva em seu livro publicado em 2004; e como propôs Gabriel Araujo em um capítulo de livro publicado em 2020) sobre os percursos do português enquanto língua falada em diferentes localidades: a língua portuguesa é múltipla e diversa.

Portugal é historicamente o berço da língua portuguesa, mas essa jamais permaneceu dentro de suas fronteiras. As línguas estão intimamente relacionadas aos seus falantes que, ao utilizá-las, podem transmiti-las e transformá-las, além de transportá-las a novas localidades.

Tendo isso em vista, os cinco séculos de colonialismo (XV-XX), ao promoverem o deslocamento de pessoas, culminaram na transplantação do português (e de outras línguas europeias) aos continentes americano e africano.

A língua portuguesa, que já era a língua materna de grande parte da população portuguesa, ou seja, o idioma adquirido pelos indivíduos ainda na infância, foi, durante os cinco séculos, imposta e difundida por meio de políticas de assimilação cultural. Como consequência disso, o português se tornou veículo de comunicação em diversos espaços, sendo atualmente falado como segunda ou terceira língua em países como Angola, Moçambique, Cabo-Verde e Guiné-Bissau. Ademais, também foi firmada como língua materna, e muitas vezes única língua de uma parcela populacional numerosa em países como Brasil e São Tomé e Príncipe. Naturalmente, diante desse fato, diferentes usos são feitos do português em cada uma dessas comunidades – fato que molda os diferentes falares (ou variedades) da língua portuguesa.

A língua portuguesa não obedece a um único molde. Considerando que o “português são vários”, é natural que o(s) português(es) seja(m) caracterizado(s) por traços linguísticos singulares e, por isso, constitua(m) normas cientificamente atestadas, o que justificaria o reconhecimento político e institucional de diferentes variedades. Porém, isso nem sempre ocorre por questões puramente ideológicas, visto que socialmente algumas línguas e variedades são mais valorizadas em detrimento de outras.

Entre os países onde o português figura como língua oficial, e mesmo dentro de um único território, as pronúncias dos sons mudaram e mudam, assim como a constituição de sentenças, as escolhas lexicais, alguns significados atribuídos às palavras, entre muitos outros fatores linguísticos. Logo, o português como “corpo espalhado pelo mundo” é composto por estruturas linguísticas compartilhadas, ao mesmo tempo que possui especificidades: não é por acaso que ‘abacaxi’, no Brasil, é ‘ananás’ em Portugal e/ou em São Tomé e Príncipe. Isso nos permite pontuar a necessidade do reconhecimento de variedades locais legitimadas institucionalmente, o que já ocorre, em geral, em Portugal e no Brasil, porém ainda não se observa em países africanos – que têm como alvo linguístico as variedades europeias, especialmente a lisboeta.

No continente africano, variedades europeias do português são socialmente bem avaliadas. Isso significa que possivelmente quanto mais próximo um falante estiver do ‘modo lusitano de falar’, mais bem visto socialmente ele será, principalmente em espaços institucionais relacionados à ascensão social, como a escola e os órgãos governamentais.

A questão, conforme apontam a autora deste texto e Manuele Bandeira num artigo publicado em 2022, todavia, é que tal atitude linguística surge de práticas colonialistas que muitas vezes exterminaram diversas línguas africanas em função da ascensão do português, e atualmente desvalorizam as variedades linguísticas locais. Autores que se debruçaram sobre o português de São Tomé e Príncipe como Gabriel Araújo, Ana Lívia Agostinho, Manuele Bandeira e a autora deste artigo indicam, por exemplo, que a participação oficializada nas escolas, na mídia e em outros espaços institucionais de variedades não europeias do português, especialmente na África, é negada. Notamos, assim, que o preconceito linguístico destinado às variedades não europeias do português aprisiona a diversidade dessa língua em um espaço social marginal.

O reconhecimento da diversidade linguística é um movimento necessário para combater a discriminação social destinada às variedades não europeias do português e principalmente aos seus falantes.

As pesquisas são cruciais nesse intuito: através de descrições, análises e documentações, linguistas produzem conhecimento e materiais que comprovam as especificidades linguísticas de cada variedade e podem ser utilizados socialmente, inclusive no ambiente escolar – contexto em que ideologias linguísticas são construídas, reforçadas e/ou desconstruídas. O reconhecimento institucional das variedades não europeias do português pode contribuir para sua autonomia sociocultural, reforçando o fato de que as transformações linguísticas inevitáveis, como ponderado por Saramago, também compõem o “corpo da língua portuguesa”.

Referências:

AGOSTINHO, Ana Lívia. 2022. Sound variation in Portuguese-speaking Africa. In The Routledge Handbook of Portuguese Phonology, ed. André Zampaulo. Routledge. To appear.

ARAUJO, Gabriel. Há uma política linguística para o português em São Tomé e Príncipe? In: SOUZA, Sweder; OLMO, Francisco Calvo (Orgs.). Línguas em português — A Lusofonia numa visão Crítica. Porto: Universidade do Porto Press, 2020.p. 173-197.

BALDUINO, Amanda Macedo; BANDEIRA, Manuele. A ascensão da língua portuguesa em São Tomé e Príncipe. Domínios de Lingu@gem, Uberlândia, v. 16, n. 3, 2022. DOI: 10.14393/DL51-v16n3a2022-4.

LOPES, Victor. Língua: vidas em português. [filme]. Rio de Janeiro: Riofilme; 2003. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JBmLzbjmhhg <acesso em 16 de dezembro>.

MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. O português são dois: novas fronteiras, velhos problemas. São Paulo: Parábola; 1ª edição, 2004, p. 152.