Você entende mediquês?

Linguagem Simples é vista como uma questão de acesso em tempos de pós-verdade e manipulação da informação

Sabrine Amaral Martins Townsend · professora, formada em Letras e é Doutora em Linguística. Desde 2019, estuda, durante seu estágio de pós-doutorado na Universidade de Santa Cruz do Sul (no interior do Rio Grande do Sul), maneiras de simplificar o mediquês de textos informativos para pessoas idosas com baixa escolaridade.

No consultório médico, o doutor escreve no receituário que entrega para Dona Cassilda, de 78 anos, as seguintes orientações:

Uso tópico

  1. Medicamentol 76g————————-2tb

Uso tópico 2x/dia ou quando houver prurido excessivo e/ou edemas.

Dona Cassilda agradece a atenção do profissional, mas não compreende o tratamento que deve fazer para a coceira que sente no corpo. Dona Cassilda não estudou muito, apenas o primeiro ciclo do Ensino Fundamental. Ela não usa a pomada recomendada pelo médico nem quando há coceira, inchaço ou vermelhidão no corpo. As expressões médicas do receituário não são frequentes no dia a dia de Dona Cassilda, por isso um tratamento simples como o uso de uma pomada pode ser um tormento se não houver explicações e simplificações dos textos com jargão médico, especialmente quando os destinatários são pacientes com idade avançada e pouco tempo de ensino formal na escola.

O chamado mediquês, português difícil usado pelos profissionais da saúde, é uma barreira para entender informações escritas sobre tratamentos e procedimentos, podendo causar até mais internações hospitalares no Sistema Único de Saúde.

Por que não simplificamos nossa forma de divulgar as informações sobre saúde, dando acessibilidade de informação a todos, todas e todes?

Não são apenas as palavras que os profissionais de saúde usam que impedem o entendimento de materiais escritos em saúde. A pesquisa do cientista Chiung-ju Liu e sua equipe da Escola de Saúde Pública de Boston, já em 2009, mostrava que uma linguagem mais complexa, com palavras pouco usadas, sentenças muito longas, com estrutura invertida, dentre outros também são barreiras na hora de compreender textos. A experiência que a pessoa já traz consigo antes da leitura e as estratégias de leitura, como a busca por palavras familiares, dos idosos com baixo nível educacional, podem não ser suficientes para compreender todas as informações. Essa dificuldade de compreensão associa-se à falta de hábitos de leitura e de escrita e ao baixo letramento em saúde dessa população, gerando problemas no acesso a informações sobre saúde. O problema no acesso prejudica a autonomia e a independência das pessoas que precisam de informações claras, pois elas precisam de mais auxílio para tomar decisões sobre sua saúde. O resultado disso tudo é uma  sobrecarga no sistema de saúde, como já dissemos antes.

No Brasil, as cientistas da Santa Casa de São Paulo, Milena Nakamura e Kátia de Almeida, mostraram que boa parte das informações escritas em saúde é complexa para a maioria das pessoas. Vale lembrar da Dona Cassilda, que viveu os anos da Pandemia Sars-Cov19 sendo alvo de uma enxurrada de informações sobre saúde que ora eram corretas, ora eram incorretas. Como a Dona Cassilda pode compreender todas as matérias de jornais e revistas com todos aqueles palavrões difíceis? E entender as indicações, nesse caso, era essencial para a manutenção de sua vida.

Países como os Estados Unidos possuem regras sugeridas pelas instituições de saúde para aumentar a acessibilidade desses materiais por pessoas com menor nível educacional e maior idade. O Instituto Nacional de Saúde e a Associação Americana de Médicos são dois órgãos que recomendam a criação de materiais educativos em saúde, indicando como base o 6º ano do Ensino Fundamental, o que torna a compreensão do mediquês mais fácil. A equipe da Doutora Kelsey Grabeel investigou, na Universidade do Tennessee, maneiras para poder avaliar se os textos estão adequados à compreensão de todos, todas e todes. Por isso, a equipe compara ferramentas da Internet que fornecem medidas detalhadas sobre a complexidade de um texto, no intuito de escolher a ferramenta mais eficiente.

Depois de olharmos para inúmeros trabalhos de pesquisadores dessa área, consideramos que é preciso simplificar os textos para informar melhor seus leitores. O ideal é reescrever o material, para que as palavras e estruturas difíceis que impactam na compreensão sejam mudadas, ou já iniciar o texto de maneira bem simples, como sugere a Rede Linguagem Simples no Brasil. Para quem ainda não conhece, a Rede Linguagem Simples Brasil foi lançada em 2021, reunindo profissionais de áreas variadas para debater e construir modelos de comunicação simples e acessível para transmitir informações de interesse coletivo, sejam elas públicas ou privadas.

Além da iniciativa, também levamos em consideração os ensinamentos da Doutora Maria José Finatto, líder do grupo de pesquisa sobre acessibilidade textual e terminológica e também professora dos cursos de Letras e Tradução da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: “É importante pensar no público para o qual o texto está sendo direcionado, afinal, temos conhecimentos e experiências diferentes.”

Na verdade, é possível que uma professora de linguística como eu também tenha dificuldades em compreender o receituário que usamos como exemplo. Isso acontece porque não somos experts em todas as áreas do conhecimento, e está tudo certo.  

Para temas que não são familiares para nós, também precisamos de uma “tradução” (tradução intralinguística: dentro da mesma língua). Então, simplificar é o melhor remédio; é o que torna o conhecimento acessível a todos, todas e todes, independentemente de idade e escolaridade.

Um dos fatores importantes para essa simplificação é o tamanho do texto. Os textos muito longos costumam demandar um maior esforço do nosso cérebro, sobrecarregando a memória e a atenção, fazendo com que a compreensão fique mais difícil. À medida que a compreensão de um texto vai aumentando, o esforço cognitivo que o indivíduo realiza vai diminuindo até que ele compreenda o texto de forma integral. Por outro lado, às vezes, textos muito curtos e com palavras pouco conhecidas é o que causa confusão, como foi o exemplo da receita médica no início deste texto. Para esse caso, poderia haver substituições das palavras ou uma explicação na própria receita, entre parênteses.

Logo, o segredo para um texto menos complicado de compreender é o conhecimento do público-alvo e a empatia. Tanto em inglês como em português, há ferramentas na Internet que possibilitam medir a complexidade de um texto. Por aqui pelo Brasil, temos como exemplo recente o Coh-Metrix 3.0 e o Simpligo, criados pela equipe de engenharia da computação do Professor Sidney Leal, na Universidade de São Paulo. Já o MedSimples, cujo foco é exclusivo em temas sobre saúde, foi idealizado pela Doutora Liana Paraguassu e equipe, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Além das ferramentas online, também contamos com estratégias que facilitam a compreensão, como o uso de imagens, ícones, espaços duplicados entre parágrafos etc. Certamente, as ferramentas ajudam no processo de escrita mais simples. Todavia, essas ferramentas não substituem a empatia necessária entre quem escreve e quem lê os textos.

Por enquanto, ainda não há políticas públicas aprovadas no Brasil que ajudem a combater a barreira do mediquês. No entanto, iniciativas isoladas já ocorrem em alguns estados como São Paulo, Espírito Santo, Ceará e Rio Grande do Sul para impedir problemas de entendimento em áreas administrativas, com o burocratês, e no direito, com o juridiquês. Portanto, é importante dizer que esse movimento de simplificação não vai demorar para chegar em todas as áreas. Afinal de contas, a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011) é um direito assegurado para toda população e precisa ser cumprida.

Referências:

GRABEEL, Kelsey; RUSSOMANO, Jennifer; OELSCHIE-GEL,  Sandy; TESTER,  Emily;  HEIDEL,  Robert.  Computerized versus  hand-scored  health  literacy  tools: A  comparison  of  Simple  Measure  of  Gobbledygook (SMOG) and Flesch-Kincaid in printed patient education materials. Journal  of  the  Medical  Library  Association, Chicago,  IL, v.  106,  nº  1,  p.  38-45,  2018. http://dx.doi.org/10.5195/jmla.2018.262

LEAL, Sidney Evaldo; DURAN, Magali Sanches; SCARTON, Carolina Evaristo; HARTMANN, Nathan Siegle; ALUÍSIO, Sandra Maria: NILC-Metrix: assessing the complexity of written and spoken language in Brazilian Portuguese. CoRR abs/2201.03445 (2022) https://arxiv.org/abs/2201.03445

LIU, Chiung-ju; KEMPER, Susan; BOVAIRD, James. Comprehension of health-related material by older adults. Education Gerontology. New York, v. 35, nº 7, p. 653-668, 2009. http://dx.doi.org/10.1080/03601270902885504

NAKAMURA, Milena Yoko; ALMEIDA, Katia. Desenvolvimento de material educacional para orientação de idosos candidatos ao uso de próteses auditivas. Audiology Communication Research, [s. l.], nº 23, e1938, p. 1-8, 2018. https://doi.org/10.1590/2317-6431-2017-1938

 PARAGUASSU, Liana. B.; ZILIO, Leonardo; HERCULES, Luiz Antônio L.; FINATTO, Maria. José. B. MedSimples: an automated simplification tool for promoting health literacy in Brazil. In: Workshop on Digital Humanities and Natural Language Processing, 2020, Évora – Portugal. DHandNLP2020 PROPOR Workshop: Digital Humanities and Natural Language Processing. Aachen: CEUR- WS, 2020. v. 1. p. 78-80.

Para saber mais sobre adaptação de textos:

TOWNSEND, Sabrine Amaral M.; GABRIEL, Rosângela. Avaliação e adaptação de materiais informativos em saúde para população idosa e com baixo nível educacional: Uma revisão integrativa. Letrônica, nº 13, v. 4, e37512, 2020. https://doi.org/10.15448/1984-4301.2020.4.37512