Vamos tratar sobre direitos sociais: o que você pensa sobre a previdência social?

Sobre a memória que a língua carrega de que direitos sociais têm relação com as desigualdades sociais

Mônica de Oliveira Pasini · é bacharel em Comunicação Social / Relações Públicas pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e mestranda no Curso de Divulgação Científica e Cultural do Laboratório de Estudos Avançados de Jornalismo do Instituto de Estudos da Linguagem (LABjor/IEL) da Universidade Estadual de Campinas.

Se eu fosse provocada sobre o que eu penso sobre previdência social, não conseguiria responder de imediato. Talvez por essa dificuldade, encontrei na teoria da Análise de Discurso (AD) uma possibilidade de compreender como o sentido de “previdência social” chega até nós, favorecendo uma compreensão do próprio exercício da cidadania, porque pertence ao discurso do direito social. Para isso, analisamos a evidência material fornecida pela linguagem, neste caso, expressa nos textos legais.

Para esse processo, a teoria nos fornece dispositivos de análise, como a noção de pré-construído de Michel Pêcheux, teórico da AD, sobre os saberes universais que estão presentes na forma de esquecimento sobre o que sabemos sobre isso ou aquilo. Em outras palavras, o “pré-construído” é um saber que já preexiste e está em funcionamento na geração de efeitos de sentido, os quais procuraremos reconhecer nos discursos sobre direito social previdenciário.

Na denominação “previdência”, constatamos uma construção simbólica que se instaura e entra em movimento num processo de significação sob certas condições de produção. E o que entendemos por condições de produção? É o contexto que abriga determinado discurso. Nesse contexto, temos os dizeres de cada grupo social, definidos como formação discursiva. Ao entendermos que um nome recorta aquele saber universal, com a  noção de historicidade, vamos procurar identificar os caminhos que levaram à nomeação.

Para o caso do direito previdenciário, que prevê intermediação entre as relações das classes trabalhadora e empregadora, cujas formações discursivas são diferentes, encontramos as primeiras referências no Art.21 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, no Ano II da Revolução Francesa: “A assistência pública é uma dívida sagrada. A sociedade deve sustentar os cidadãos infelizes, dando-lhes trabalho, ou assegurando os meios de subsistência aos que não estejam em condições de trabalhar”. Sobre o período no qual ela esteve vigente, o historiador Eric Hobsbawm afirma que permaneceu a marca da violência, porque esse segundo ano de revolução ficou caracterizado por uma intensa e violenta mobilização do povo por justiça social.

Com a sua revogação, em 1794, nascia a configuração de Estado-jurídico, de direitos e deveres, que experimentamos em nossos dias. Quando interpela o indivíduo com suas leis, concedendo-lhe a forma-sujeito de direitos, admitimos que o Estado passa a assumir o papel de articulador simbólico-político. Por isso, encontramos no discurso jurídico, aqui, o texto da declaração, a relação entre sentido e história, cujas palavras se ligam às coisas de forma indireta, em uma produção ideológica. Destacamos que é a ação da ideologia que torna possível a correspondência de “Assistência pública”; “sociedade deve sustentar”; “assegurando” aqueles “que não estejam em condições de trabalhar”. Nessa materialidade linguística, consideramos as evidências produzidas ideologicamente como movimentos de constituição dos sentidos do Estado jurídico na Revolução Francesa, que seguem produzindo efeitos.

As revoluções, ocorridas nos séculos XVIII, XIX e início do século XX, trouxeram o direito social como fundamental para todos os indivíduos, pois eram inspiradas pelo ideário de Engels e Marx, que denunciavam a desigualdade social produzida pelo sistema capitalista. Ao exporem a natureza injusta do sistema capitalista, expuseram os conflitos entre a burguesia e o operariado. Suas ideias passaram a rondar a classe dominante como “espectros” que assombravam a Europa e que para a teoria da AD seriam como pontos de contato entre aquilo que se vê e o invisível, entre o que existe e aquilo está além. Este é o local de formulação do direito previdenciário, pois é neste período que encontramos, nos textos constitucionais de diversos países, a denominação “previdência”, cujo apagamento de determinadas formações discursivas vinculadas às reivindicações da classe trabalhadora organizada deixa vestígios.

Aquilo que não é dito, a luta daquele que vende seu trabalho e daquele que lucra com esse trabalho é apagada, gerando outra ordem de sentidos para este nome.

A respeito da designação “cidadão”, encontramos, nas análises feitas por Eduardo Guimarães, de textos da Constituição do Império de 1824, de Decretos do início da República e da Constituição Republicana de 1891 do Brasil, um sujeito que não consegue ocupar seu efetivo lugar. Segundo o autor, há uma fragilidade no termo “cidadão”, porque é sempre um elemento de fora que fala sobre ele, com o poder, inclusive, de lhe dar uma configuração, que pode até excluir o seu próprio caráter de cidadão.

Com essa fragilidade para o sentido de “cidadão”, localizamos pela primeira vez, na Constituição brasileira de 1934, a denominação “previdência” atribuída às condições: “[…] da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte” (BRASIL, 1934). Ao ter esses fatos da vida relacionados à denominação “previdência”, o indivíduo é interpelado na forma-sujeito de direito, individualizada e condicionada a contribuir para ter direito à proteção social: “mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado” (Ibid., 1934).

Mais tarde, na Constituição de 1946, achamos “previdência social” também relacionada à proteção aos eventos da vida do sujeito-trabalhador. Na declaração do período de maior conflito da Revolução Francesa, a denominação “assistência pública” ecoa no século XX no mesmo cunho de “previdência social”. Essa historicidade é o vestígio ideológico do apagamento porque os sentidos da primeira são esvaziados. Quando é incorporado em sua denominação o termo “social”, temos uma equivalência à “pública”, então observamos que a ameaça da luta de classes é neutralizada no termo “social”, cujo sentido de proteção se vincula à contribuição.

Portanto, ao buscar os percursos de sentidos de um direito social com a AD, constatamos o sentido estabilizado de garantia de renda para o sujeito-trabalhador que contribui para a previdência social, um direito condicionado que restringe o exercício da cidadania.

Também percebemos que há sentidos interditados na própria formulação do nome, bem como um esvaziamento do sentido de proteção. Encerramos refletindo com uma reformulação da pergunta do título: “o que você pensa sobre proteção social”?

 REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1934). Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 16 de julho de 1934. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm Acesso em 02 ago. 2022.

COSTA, Greciely. Sentidos de milícia: entre a lei e o crime. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014.

GUIMARÃES, Eduardo. Os sentidos de cidadão no império e na república no Brasil. In: GUIMARÃES, E. e ORLANDI, E. (org.)  Língua e Cidadania: o português no Brasil. Campinas, SP: Pontes, 1996. p. 39-46.

HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções, 1789 – 1848. 46.ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.   

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PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014