“Cabô” – o primeiro verbo que uma criança falou

Sobre as primeiras palavras da criança e como os verbos são diferentes

Pedro Perini-Santos e Lídia Ferreira-Santos · Pedro é pesquisador do Grupo Corpus Infantil Longitudinal da UFVJM e do Grupo de Pesquisa em Aquisição da Linguagem da Unicamp. Lídia é graduada em Letras e em Humanidades. Mãe-pesquisadora, Lídia faz parte do grupo Corpus Infantil Longitudinal desde a sua criação em 2015.

Os verbos formam um grupo de palavras que têm características mórficas próprias. Apenas esse grupo lexical tem flexões verbais, um finalzinho de palavra que expressa pessoa, número e tempo.

Canto, cantaremos e cantei expressam [1ª pessoa, singular e presente], [1ª pessoa, plural e futuro] e [1ª pessoa, singular e pretérito] em função dessas flexões. Por isso, essas palavras são verbos. Além disso, leva-se em conta onde essas palavras ocorrem para saber se funcionam como verbos. Por exemplo, quando a gente fala que (1) a Tânia colocou o vaso no canto da sala, que (2) a Tânia estuda o canto popular brasileiro e que (3) eu canto muito mal se comparado com o Gil, temos a mesma sequência sonora [‘kãtu] em funções diferentes. Em (1), canto é um local na casa da Tânia. Em (2), canto é o tema que ela estuda. Nessas duas primeiras frases, canto funciona como substantivo. Apenas na frase (3), canto funciona como verbo.

O outro traço que interessa aqui tem a ver com o significado verbal. Verbos expressam eventos. O conceito de evento não é fácil de se definir, mas vamos assumir que um evento é algo que pode ser narrado ou é uma situação que pode ser caracterizada. Quando a gente diz que (4) a Tânia serviu um café para o sogro, um evento é relatado por uma frase composta pelo verbo [serviu] + os complementos [a Tânia], que vem antes do verbo, e [um café] e [para o sogro], que vêm depois dele. Quando a gente diz que (5) o café estava super doce, a frase caracteriza uma situação fazendo uso do verbo [estava] + o complemento [o café], que aparece antes dele, e um outro complemento verbal [super doce] que vem depois. O primeiro caso é um evento-episódio, algo que ocorreu e que foi relatado. O segundo caso é um evento-situação, em quefoi feita uma caracterização.

Antes de falar sobre o uso verbal infantil, é importante voltar a um aspecto sobre os verbos: a quantidade de complementos que pedem. Nas frases abaixo, o evento “almoçar” é verbalmente expresso com mais ou menos complementos:

(6) [Eu] almocei [uma salada].

(7) Almocei [uma salada].

(8) Almocei.

A frase (6) tem 2 complementos. A frase (7) tem um complemento. E a frase (8) não tem nenhum. Mesmo em apresentação solitária, o verbo almocei oferece uma quantidade significativa de informações: a hora da refeição, a temperatura da comida, o sabor da receita, quantas pessoas comeram e que a bebida que acompanhou a refeição é fria etc.

Antes ainda de apresentar o primeiro uso verbal localizado na fala de uma criança durante sua conversa com a mãe, vale falar sobre quem participa dessa conversa. A mãe, a avó e a criança, que teve a primeira fala gravada aos 5 meses de idade, moram em uma pequena cidade de Minas Gerais. Durante 4 anos, uma vez por mês, a mãe registrou as conversas entre eles usando um gravador que em nada afetou a dinâmica dos diálogos.

Nesse conjunto de gravações, o primeiro uso verbal infantil localizado foi a expressão cabô, uma forma reduzida de [<acabou], que a criança falou. Nesta data, o protagonista infantil, identificado como G, tinha um ano e seis meses de vida. A conversa aconteceu na sala onde assistiam TV. A criança caminhava em direção da mãe carregando um copo de vidro vazio.  

  • Mãe: Menino, esse trem quebra!
  • Avó: Também sua mãe não tem juízo, né meu filho?
  • Mãe: Fala assim: não fala mal da minha mãe.
  • G: Vó.
  • Avó: Nem um tiquim, nem um pinguinhozim
  • G: Cabô.
  • Mãe: Cabô, filho?
  • G: É.
  • Mãe: É, cabô. Pede a vovó mais.
  • Avó: Mais o que?
  • Mãe: Pede a vovó mais, pede.
  • Avó: O que cê que fi?
  • G: Ma.
  • Avó: Ham?
  • G: Ma.
  • Mãe: Fala assim: mais vovó.
  • G: Mais.
  • Avó: Mais o que?
  • Mãe: Ô filho, G, G olha aqui pra mamãe. Psiu. Fala assim com a vovó: café.
  • G: Bô.

G usa o verbo acabar duas vezes: uma vez na forma cabô, após a fala da avó, e outra na forma, após a fala da mãe. Nos dois casos, a criança mostra a elas que o copo está vazio, porque o que tinha nele… cabô. A criança narra um evento usando um verbo sem complementos e é compreendida pelas interlocutoras: as adultas que dialogam com G não reconheceram incompletude na fala da criança e, por isso, dão sequência na conversa.

Tem mais a ser dito sobre esses dois primeiros usos verbais reconhecidos na fala de nosso protagonista. Eles têm funções diferentes. O primeiro uso é uma explicação. A mãe e a avó receavam que G se acidentasse com o objeto de vidro que carregava: …esse trem quebra, …sua mãe não tem juízo.

G se aproximou e explicou que ostentava o copo de vidro porque o que ele continha… cabô. A explicação é compreendida e acatada pela mãe: É, cabô.

O segundo uso verbal infantil que expressa o evento “acabar” se deu em uma forma ainda mais reduzida: . Nesse caso, G usa o verbo acabar para justificar o pedido à avó por maisbebida. Traduzida para uma forma convencional, o pedido feito pela criança seria algo como ‘a bebida que estava no copo acabou, por isso, peço mais’.

Desde as pesquisas de Roger Brown publicadas nos anos 1950, a linguística reconhece a pertinência dos estudos sobre o uso verbal infantil. Falar um verbo significa identificar o começo e o fim de um evento, significa identificar um objeto e a ele atribuir alguma característica. Não se sugere aqui que haja uma relação direta entre a habilidade cognitiva e a expressão verbal – muita água passa por debaixo dessa ponte. O que pode se dizer é que, a seu modo, a criança é capaz de identificar, processar e expressar eventos durante os diálogos dos quais participa. Como afirma Rosa Attié Figueira, num texto publicado em 2019, é justamente durante “as situações rotineiras de interação” que incluem “quem fala, a quem se fala e as expectativas que cada qual reconhece no outro a quem a fala é dirigida” (p. 106) que ocorrem as alternâncias de turnos de fala entre os adultos e as crianças. Durante essas interações, os pais verbalizam para os filhos aquilo que fizeram, fazem ou vão fazer. Aprende-se, assim, a expressar eventos concretos e abstratos, fazendo uso de expressões linguísticas ricas em informação verbal e não-verbal.

Para saber mais

De Lemos, Maria Teresa Guimarães. A língua que me falta – uma análise dos estudos em aquisição de linguagem. Campinas: Mercado de letras, 2002.

Del Ré, Alessandra; Orvig, Anne Salazar. Olhares dialógicos sobre a aquisição da linguagem. Bakhtiniana. Revista De Estudos Do Discurso, vol. 16,  n. 1, p. 4-11, 2020.

Figueira, Rosa. Inovações na expressão da agentividade – episódios marcantes da trajetória linguística da Criança. Linguística, vol. 35, n. 2, p.105-127, 2019.

Perini-Santos, Pedro; Ferreira-Santos, Lídia;Leal, Jéssica; Bodolay, Adriana. Pesquisa longitudinal: a evolução do uso lexical de uma criança dos 5 aos 22 meses de vida em um diário parental. Revista de Estudos da Linguagem, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019.

Perini, Mário. Estudos de Gramática Descritiva – as valências verbais. São Paulo: Parábola, 2006.